quarta-feira, 16 de agosto de 2006

Onde a minha saudade a cor se trava

Para Béqui



O sonho…e agora, José?

O sonho acabou. Dona Mindoca, a mulher das nossas vidas, morreu. Em sentimentos mistos, busco no intertexto de “a mãe morreu”, no “O Estrangeiro”, de Alberto Camus, um absurdo conforto. O meu pai, na sua digna e infinita tristeza, balbuciará a drummoniana frase: E agora, José? Sinto os meus irmãos, tristes e indignados, ainda incrédulos dessa profunda religiosidade (não a dos templos que almejam guardiães, mas a do Zodíaco que arranja estrelas do Destino). E agora, você? No mais fundo de mim, sou um poço de dúvidas. Ao Sísifo tirem tudo, menos as pedras. Ao Cristo, não lhe retirem a Cruz. Tão pouco queiram subtrair ao Significante o Significado. Busco, no holograma deste tempo, as absolutas razões para não morrer de tristeza. Logo eu que vos suplicara, na escrita do escrito, a minha mãe de volta. Logo eu que, em acto de toda a humildade, daria a alegria, a energia e a escrita, tudo o que mais quisessem, por esse regresso. Ferido de morte, algo em mim – em nós, diria – renasce das cinzas. A dialéctica do sofrimento, sublimando as coisas. A lembrança em forma de força. A saudade em jeito de resistência. O amor que move montanhas. O sonho acabou? Da janela em que olho o vazio, ou quem sabe a eternidade, uma ciciante palavra recusa o terminal deste sonho. Voz de tão só ternura: o sonho apenas começou. Meus amigos, é ela, a mulher das nossas vidas, que eu sei…

Alma gentil

Não vos falaria aqui da Dona Mindoca, professora e pessoa pública. Nem da sua generosidade social que saltava à vista. Falo-vos agora das coisas mais íntimas, desse lado de cá da rosa. Das minhas brincadeiras com ela: Dona Mindoca não é poeta, mas Poesia. Em verdade, eu via nela uma metáfora em toda a transcendência e vivia essa mulher em todo o vate poético. E punha não minhas preces e crenças e sim as orações que me ensinara: alguns versos de Fernando Pessoa. Quem me roubou a minha dor antiga? E fiz com que se fizesse vaidosa, linda e raínha aos gracejos deste Albatroz. E sou feliz por tê-la feito sorrir mais do que chorar. E estou em paz por tê-la amado até ao fim da linha. Dona Mindoca, deste lado da lua, era um ser humano extraordinário. Ela adorava o pôr-do-sol e, sempre que víamos juntos um crepúsculo, a frase era: eis o estado de beleza que nenhum artista consegue imitar. Gostava também das plantas e dos animais. Acordava cedo para a azáfama das plantas no terraço da casa e deleitava-se com o chilreio dos passarinhos. Adorava viajar e tinha as suas paixões pelos lugares. Nem vos conto de como bateu palmas ao ver São Petersbugo, o Monte Jura e as margens do Rio Charles. O luminoso encanto no alto da serra no Ceará e muitos outros lugares por onde andou, sempre de forma curiosa e generosa, fazendo amigos e expandindo Cabo Verde. Falo-vos aqui e agora de uma luz boa e terna, e quiçá eterna, que passou pelas nossas vidas. Como uma estrela a riscar o firmamento e deixou o travo da suprema beleza…

Post Scriptum

Manda a nobreza, em nome de todos, agradecer aos que nos últimos dias fizeram por salvar a Dona Mindoca. A boa intenção, mais do que o sucesso, tem a sua divindade. E, em toda a dignidade desta nossa dor profunda, queremos reconhecer publicamente o empenho de todos. As dúvidas, as frustrações e as revoltas, que ainda nos dilaceram, estão a ser sublimadas. A morte da Dona Mindoca não será um acto de ficar no ar, antes de mergulhar no esquecimento. Queremos também agradecer ao conforto que nos dá, nesta hora de catarse, um turbilhão de amigos e conhecidos.

Post Post Scriptum

Este texto é S/Cem Margens. Por conseguinte, ele é meu. Mas o escrito nesta escrita, tenho a certeza, poderia ser assumido, com mais engenho e arte, por um punhado de apaixonados, nomeadamente Anastácio Filinto Correia e Silva, José Cardoso, Osvaldo Correia e Silva, Antero Simas, Benilde Correia e Silva, António Correia e Silva e Alberto Correia e Silva. E, numa dimensão de mundo novo, pelos netos da Dona Mindoca – a “Geração da Gelatada”, que é hoje o nosso sofrimento abreviado.

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