terça-feira, 22 de agosto de 2006

O tempo circular dos tempos





Glosa

Serão os verbos, a verve e a tecitura esta obsessão de te rever na próxima esquina? Neste tempo de “múltiplos tempos”, estarei contigo no imaginário e na lembrança tão-somente. Não pude, qual Sharezade, perpetuar os nossos encontros em estórias de Mil e Uma Noites. Nem pude – e eis como estranha a minha ledice – postular outro vôo de pássaro que não fosse aquele. Os meus escritos continuarão a ser para ti, minha musa, e, em seus artifícios e alfaias, eles abordarão o tempo circular, mãe de todos os outros. Mesmo quando, por repto do quotidiano, descemos ao pulsar das esquinas...

1. O “tempo de São Filipe”

As intervenções efectuadas pela Câmara Municipal de São Filipe nalguns espaços públicos daquela cidade, oportunamente denunciadas pelo cidadão Fausto Rosário, foram agora “chumbadas” pelo Instituto da Investigação e do Património Cultural (IIPC), sob alegação de que as mesmas “descaracterizam” o Centro Histórico de São Filipe. O posicionamento do Ministério da Cultura, através do IIPC, revela um sentido de autoridade sobre as questões patrimoniais e uma atenção em relação às demandas da cidadania. Os poderes públicos devem ser capazes de responder, em tempo crítico, às descaracterizações dos elementos patrimoniais e ambientais de Cabo Verde, para além dos interesses partidários, económicos e outros. Sem afrontar quem quer que seja, nem fulanizar certas questões, é imperioso um reordenamento das coisas em muitos pontos do país, onde o caos se instalou e a crítica entrou na ordem do dia. Não podemos permitir que o património cultural e ambiental seja delapidado. A destruição, ou mesmo a descaracterização dos nossos bens patrimoniais condiciona a nossa memória e o nosso sentido de tempo histórico. A quem compete preservar e valorizar a nossa identidade? Preservar é um direito e um dever de todos nós, de todo o cidadão, e também do Estado. Cada um de nós deve estar atento aos grandes empreendimentos municipais e outros (privados, inclusive), evitando que os mesmos colidam com o patrimônio. Ao saudarmos a iniciativa do IIPC não significa defendermos a paragem no tempo. O município de São Filipe, como todos os outros de Cabo Verde, precisa de saneamento básico, de infraestruturação e de edificação, valores que agregam melhoria de vida aos cidadãos. Mas as diferentes velocidades dos tempos não se devem colidir. Por isso, as coisas têm de partir de um verdadeiro pacto social entre o Governo, a Edilidade e o Cidadão. Desta tríade, ninguém deve ficar de fora. O resto é karkutisam e o país não pode derramar seu “tempo”...

2. O “tempo claridoso”

Não se pode também lidar com o passado como se ele não existisse. Nem se deve deixar de admitir que Cabo Verde seja uma multiplicidade de “tempos”, alguns mais históricos que outros. Por conseguinte, esta viagem, retrospectiva pelo “tempo claridoso”, um dos mais marcantes, se não o mais determinante, da nossa modernidade literária, se tornou imperiosa. Ao meu ver, a Claridade começa em 1935 e o arauto de tal fenómeno terá sido o poeta Jorge Barbosa. O seu livro “Arquipélago”, publicado nesse ano, traz embutido todos os signos e premissas de “pés fincados no chão” e “olhos voltados para a realidade social”. O afrontamento temático dos claridosos estava todo ali. Mas foi no ano seguinte, em 1936, com o lançamento da Revista Claridade, na cidade do Mindelo, que o sentido ganha dinâmica e sistematicidade. Dir-se-ia que a nova largada, inscrita no escrita barbosiana, ganha então transcendência. Dá-se claramente uma mudança de paradigma, rompendo os intelectuais com o mimetismo cultural, ora modal e costumeiro, em prol de novos fundamentos e problemáticas. O imaginário, bem como o processo criativo, desloca-se para o cenário das ilhas e para o drama das suas gentes. A Geração de Baltazar Lopes da Silva (e Oswaldo Alcântera), Manuel Lopes e Jorge Barbosa, e a de seus contemporâneos dialécticos, António Aurélio Gonçalves e Jaime de Figueiredo, entre outros, reconfiguraram uma mitologia da cultura cabo-verdiana de um molde mais plausível e próximo – a caboverdianidade. E, em lacto senso, mudaram o nosso jeito de ser e de estar no mundo, não só a poética e a prosa ficcional, mas o ensaio antropológico e a crítica social. Outrossim, vale reconhecer que a Claridade foi também um prenúncio e uma advertência do despertar nacionalista. Era, em toda a linha, o acordar de um tempo histórico. O silencioso que se conscientiza silenciado e, destarte, questiona o mundo e a mundividência. Nos seus rudimentos...naturalmente!

3. Onde as águas não se misturam

Resignado ao sentido doloroso da existência, o Poeta caminha. Ele está ciente de não poder ultrapassar o parapeito da sua angústia, mas caminha. Agora que seu pressentimento se desfez numa perda atroz, onde as águas não se misturam, ele deambula. Balbuciando sempre a glosa de Fernando Pessoa (pois não abriria mão da sua loucura): a minha dor antiga...quem ma roubou?

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