segunda-feira, 12 de junho de 2006

Dia dos Namorados




Argila
Dimas Macedo

Em duas partes
a vida se divide
e em duas artes
o imponderável
do corpo se revela.
Pela primeira arte
o rito do amor é chama;
pela segunda
o mito da paixão é dádiva.
E a dor de não amar
o amor é devaneio torpe
porque o prazer inflama
a dor de não doar
o corpo ao precipício.
E tudo que tu dizes
o barro dos teus olhos
o brilho do teu rosto
o sal dos teus dedos
de marfim e tédio
tudo é impasse
pois tudo está exposto
à liturgia da divisão das partes.

Diário do Nordeste,
Fortaleza, 12.06.06
Dia dos Namorados

Jornais da terra, Copa 06 e “changedidame” de São João





“O forró corria solto,
Sem problema e sem vexame
Quando o chefe da quadrilha
Decretou changedidame [...]
(“Quadrilha”, de Chico Buarque)



O que vai na imprensa…em diagonal

Apesar da pressa, leio os jornais de Cabo Verde. O cronista tem de estar informado. Ainda que diagonalmente, a questão dos salários me pareceu o tema quente desta semana. Uma crítica do leitor atento abordou a questão do tema quente. Há gente que gosta da realidade. Fazer o quê? O Governo pode não dar 5%, mas tem de explicar à opinião pública e aos parceiros sociais as reais vantagens de o país não perder a dinâmica do crescimento. É difícil assumir, mas João Serra tem razão. É preciso segurar o despesismo, mesmo diante do desafio da inflação, para que haja solvência económica. Não é fácil não dar. Só por uma coerência económica e uma coragem política é que se segura o ajustamento salarial. A hora é de contenção, pois, adicionado aos choques externos com as flutuações do petróleo e do dólar, Cabo Verde tem convergências a cumprir, dívidas a pagar e transição a fazer. É preciso abrir o jogo com a opinião pública e os parceiros sociais, explicando-lhes que a ética social tem estratégias, prioridades e prazos. Em democracia, a comunicação é um “must”…

A Copa 06 e o começo sofrido

Começo sofrido...A Copa começou e eu passei os primeiros dias a sofrer. Perderam a Costa do Marfim e a Angola. E a vitória do Equador não foi suficiente para me estimular. Tanto que vi o Gana a jogar de costas para a minha televisão mixuruca e de cara para o meu portátil. As minhas experiências com o telão de plasma acabaram traumáticas: todo o mundo a comemorar ruidosamente e eu a sair de fininho.

Forró solto na Praça do Ferreira

Mais bonita que a Copa, olhada na minha tevê mixuruca ou no telão de plasma do Clube, são as festas juninas, em prol de Santo Anónio, São João e São Pedro. Mais bonita, mais interessante e mais autêntica, diga-se. Festas que prometem chuva, amor e sucesso. Estes santos dos amores e de assuntos afins. As afeições perdidas. Os namorados, noivos, maridos ou amantes distantes. Os amores frios ou apartados. Festas que o povo realmente gosta. E corre solto o forró e o povo todo dança, na Praça do Ferreira. No Nordeste Brasileiro isto é levado mesmo a sério. Durante todo o mês de junho, noite ou dia, os acordes das sanfonas, dos triângulos e das zabumbas, arrastam milhares de pessoas. As ruas são ornamentadas com bandeirinhas e balões para o forró e o passeio das quadrilhas. Passa por mim um casal – ele Lampião e ela Maria Bonita – e tenho a impressão de viver um quadro de José Lins do Rêgo, romancista maior que muito influenciou gente nossa. Fogueiras, batatas-doces assadas, canjica, quentão, milho verde assado, pipocas, quadrilhas, bumbas-meu-boi, simpatias, fogos de artifício, bombinhas e busca-pés. Mas o melhor mesmo é cuscuz, servido com leite de cabra e guisado de bode. Onde já vi isso? Em Cabo Verde como no Nordeste Brasileiro, faz-se também a sorte da clara de ovo dentro do copo de água. É a forma de ver se o ano será de estiagem. Ou de boas águas…

Ah…esse filme

E a propósito de começo sofrido, temos de encarar os começos com entusiasmos comedidos e olhos críticos. A democracia é aquela que nos permite remar contra a corrente. Contra a navegação recorrente. O “changedidame” do forró. O Pranchinha diria que o último a sair, apagasse a luz do aeroporto. Isso se a meretriza da Electra não nos antecipar com um maravilhoso apagão. Mas indo ao tema quente, como exigiu um cidadão leitor, começa a operação de repariamento dos clandestinos. Começa também a operação da NATO. Começa ainda a operação dos Sindicatos Livres. Tanto começar, minha gente. Acho que conheço esse filme. Morremos todos no fim…

segunda-feira, 5 de junho de 2006

Viva a Copa 2006

À guisa de Zero

Os meus encontros com Dimas Macedo, poeta e Procurador do Estado, são caudalosos almoços. Fazemo-los em dias de tarde livre, pois há troca de livros, ideias e novidades. Recitamos os bons poemas que atravessam lugares e tempos. Hoje – diante do bom peixe na brasa, com arroz de brócolis e acondicionado a suco de cajá - falou-se das grandes famílias do Ceará. Das relações políticas, dos casamentos de conveniência e do coronelismo mutante. As políticas públicas, cá e lá, também assistiram à nossa sobremesa (o obrigatório doce de mangaba). E marcamos assistir juntos (num clube com telão de plasma, claro) o Brasil x Croácia. Bem, isso era para abrir a crónica…à guisa de Zero, como diria o saudoso Pranchinha.

A terra dos nossos avós

Não será com Micheal Porter, nem com gurús afins que estas ilhas avançam. A questão é cultural. Temos de saber identificar na nossa cultura os factores do desenvolvimento. Essa coisa de importar tudo acriticamente - de suco de fruta a gestores aeronáuticos, passando por jogos de azar -, não trará soluções sustentáveis. Importam mudanças de fundo e não a obsessão de colocar o arquipélago no “ponto-de-venda”. Sem triunfalismos, mas com estratégias. Vamos, sim, construir “a terra dos nossos avós”…

Na moda e a Electra

Cabo Verde está na moda, mas às escuras. Os apagões da Electra são o grande embaraço, numa altura em que se quer convencer a todos que já estamos PDM. Abuso, deboche ou inspiração rasteira? Espera-se, sinceramente, que o bréu já esteja a mexer com a paciência daqueles que dão as cartas, pois os cidadãos de há muito que querem ver essa fraude de malas aviadas. Na moda, dizia, mas está muito difícil. A Electra jogou todas as suas fichas e perdeu-as. Ou será que tem outros trunfos? Na manga, acredita-se…

Nato, patronato e o Pop xô di bola

O que destrinça Cabo Verde dos demais é o orgulho do cabo-verdiano. Estando na roça de São Tomé e Princípe, na fábrica em Boston e na construção em Lisboa. Patronato, mas devagar. Nato, idem. Sem perder o decoro. Há dias, já ía acontecendo com um karkamano a guiar na contra-mão em plena Praça Nova. E não é que o homem esperneou e fez break-dance quando a polícia o quis multar! O natinho malcriado esteve para levar umas bolachas da Pop no Mindelo. Gostei. Xô di bola! Pobre, mas não miserável. Não estamos na Copa 2005, mas Cabo Verde tem futuro, sim senhor…

“Intelectual orgânico” em tempos de Copa 2006

O meu amigo Casimiro de Pina continua (elegante e fino-da-bossa) com aquilo de “intelectual orgânico”, palavrão anacrónico desde que a pequena-burguesia “subsidiou-se” nos anos noventa ao invés de “suicidar-se”, como era vaticínio revolucionário. O jargão de “intelectual orgânico” já não move catedrais, nem arrasta multidões. Isso era ao tempo em que o pessoal ía aos comícios sem bandeirolas, nem camisolas, quanto mais feijoadas. Hoje, é a Copa 2006. Outros tempos…orgânicos!

domingo, 4 de junho de 2006

Água ardente de cana boa



(Feira de agronegócio. O jovem belo, alto e negro,
cumprimenta “Shalom”. Não se sabe se às frutas ou
se às damas provantes desse aguardente. O aroma
da cana leva à minha ilha. Estou, estamos, ó musa,
no Pelourinho da Cidade Velha)



Na minha ilha, antes do agronegócio, brancos e negros
Descobriram o segredo da mistura, e nós, douradíssima musa,
Somos este sumo abastecendo o mercado mundial da sede
E, sem conservantes nem corantes, apenas tesão, de navegantes…

À beira dos trapiches, onde o canavial de vista se perde, eles
Amavam-se alheios à história, deuses e costumes, resinados
Qual gota que pinga, açucarada e ácida, mel de alambique
Que o vulgo, em malicioso lumdu, cantava ali quem come quem…

A minha ilha é a história dos escravos, e sob a terra frutal
E as oceanosas águas das baías e recifes, vivas aguarelas
Brotam, na medra do antanho e do boi na bumba, amor e ódio…

Canas, canoas e canoras aves, casas, sobrados e casebres,
Mangaba in natura ou alfarroba da Costa, ó navios do mundo,
Judeu azevichado noutro fanado, comido aqui no bacanal das Cinzas…

Banana passa




Às musas da Praça do Mercado


Quando levas à boca a banana passa, do Jequitinhonha,
Fruta do conde, carnuda e polpuda, vêm à minha ideia
Os pregões em clave, vendedeiras da Praça do Mercado,
Banana prata, nanica e nanicão do Vale da Ribeira…

E, no paralelo vão dos tabuleiros, esteiras e bandejas,
Frescas, fritas e secas, viajando-me à minha infância
Nha Mamãzinha a desidratar bananas ao sol da tarde
E no alarde do sereno, as solturas do primeiro olhar…

Ali, na Praça do Mercado, também rolava-se o tabaco,
Em folha e louro, de mascar, cheirar ou fumar, o chá e o clã
(depende de ocê, dizem) de canhoto fino ou mais vagabundo…

E no turbilhão – araçá pêra, maçã gala e abacaxi pérola
- estou com mamas, mamão e calabaça (xarope, dizem),
Na mão delas…banana prata, nanica e nanicão!


(Aos 40, as frutas souberam-me outras, aveludadas na mão,
sucolentas na boca, polpudas de ver, caídas nas cores serenas
e tresandadas nos desejos que me latejam ainda nos poros)




Tão outras como eram aqui aos 20, as frutas
Mordidas em toda a água, sal e carne, vicejavam,
De cesta à boca e de boca ao âmago, lembranças
Que foram em mim o visco e o cisco palpitantes…

Aprendi nelas, nos idos anos, que as palavras,
Em alto estado de sêmea ou fêmea, já dizem
A semente curvilínea das dunas e o ardor semântico
De quem se aninha ao lado e sabe à rosea das uvas…

E, atento aos perfumes, tácteis e visíveis, ouço,
No mais fundo do tempo, das cerejas o fresco gosto
Com que nos laranjais a minha fome incendiava…

Fendas abertas à mão, manchas tatuadas, veias
Corridas em quentes seivas e que, versos desaguantes,
Deixavam – não as marcas, mas a sede que fui aos 20…

sexta-feira, 2 de junho de 2006

Assinando por Morris Makkar


Eu assinaria, sem pestanejar, a petição pela permanência em Cabo Verde do Dr. Morris Makkar. Não me interessa as suas opções políticas, religiosas, futebolísticas e quejandos. Quero até crer que elas seriam divergentes das minhas. Who cares? Mas o que significa (e muito) é que ele, além de exímio profissional, tem sido um amigo incondicional de Cabo Verde e dos cabo-verdianos. Quantas vidas o Dr. Morris terá salvado, não só pela sua intervenção clínica, mas pela sua dedicação humana (e humanista). Conheci-o em circunstâncias públicas e privadas. Ao longo de mais de vinte anos. A viver o dia-a-dia connosco, em momentos de euforia e de tristeza. Valeroso ser humano, a preservar. Para lá das pequenas razões do quotidiano. Passem-me lá as listas. Numa delas, também perfilo o meu nome...

quinta-feira, 1 de junho de 2006

Em defesa do património


O património histórico da bela cidade de São Filipe continua a provocar aceso qüiproquó. A cadeia da polémica alargou-se e assiste-se agora a uma divergência de posições entre o Governo e a Câmara Municipal. Esta última acusa aquele de “politicamente inconveniente e tecnicamente inoportuna”. Sinal de ambiente democrático, meus senhores. Vejam o fenômeno pelo seu lado positivo. O âmago de tudo é a preservação e a promoção do património histórico, um dos maiores recursos da cidade de Pedro Cardoso. De momento, não se antevê outro factor alavancador do desenvolvimento de São Filipe que não o investimento pesado na sua história e no património que a testemunha. Para um turismo sustentável e integrador, como é moda afirmar. Delapidar esse património ou mesmo negligenciá-lo é claramente perigar o futuro da cidade. As atitudes de Fausto de Rosário e outros, a despeito das querelas antigas, algumas típicas da freguesia, devem ser tomadas como uma chamada de atenção para o futuro patrimonial, no rol das riquezas nacionais. Eu louvei-os e saudei-os, de espírito aberto. E naturalmente que Manuel Veiga fez a coisa certa em pedir delicadeza, elegância e competência. O património histórico transcende o crivo exclusivo da Câmara Municipal. E já agora é assunto que extravasa o próprio Governo. É questão (interdisciplinar) que interpela a todos (e não apenas os da nossa geração). A perspectiva demanda por isso a cidadania mais crítica. Pessoalmente, pareceu-me simplista, anacrônica e redutora a forma como a edilidade vem enfrentando o afrontamento protagonizado, em boa hora, por Fausto de Rosário e outros...