Vamos fincar o Mastro no coração de Cabo Verde, porque morreu, aos 98 anos, Francisco Fontes, conhecido por Nhô Mulato. Absortos todos no desenfreio de um crescimento económico e de uma política de circunstância, nem todos fomos – as autoridades, as personalidades e as entidades culturais, por exemplo, lá não estavam – a acompanhar o decano das Bandeiras de Cabo Verde à sua última morada. Mas estavam presentes os populares, em lágrimas e alvíssaras, com tambores e bandeiras sobretudo – kanizados das horas substantivas –, a prestarem homenagem a Nhô Mulato.
Com uma longevidade dedicada à Banderona, manifestação cultural dos devotos a São João Baptista, que se realiza anualmente em Campanas, entre os meses de Janeiro e Fevereiro, Nhô Mulato, fora o Kordidjêro, figura com o supremo poder de orquestrar e de dirigir os 24 dias de festa rixa e desabrida, considerada por muitos como a maior e a mais ancestral de Cabo Verde.
Envolvendo uma estrutura complexa, a Banderona, como todas as Bandeiras da Ilha do Fogo, tem os seus arreias e as suas romarias, umas sagradas, outras profanas, mas todas de profundo sincretismo, onde os populares dão largas aos seus sentimentos de devoção e à memória histórica.
Os juízes, os padrinhos, os tamboreiros, os kanizados, os coladores e as coladeras, as cozinheiras, os ladrões, os escravos, os santos e os demónios, bem como os entes vivos e mortos, todos os imprescindíveis do arquétipo e do conteúdo da sociedade de Campanas, choram a partida de Nhô Mulato e festejam a continuidade da Bandeira de São João Baptista, já que a morte é apenas uma etapa da vida, senão mesmo sua continuidade.
O que envolve a Banderona vem do antanho e tem a ver com a nossa espiritualidade. Não valerá a pena seguirmos a estrada dos novos dias, se deixarmos pela caminhada a nossa alma ancestral e o nosso sentido primordial.
Vamos parar tudo, mas tudo, nessa hora grave e ouçamos a voz dos cantores e o rufar dos tambores (todos os tambores de Cabo Verde afinal). Mulato morreu. Estremeça o mundo, como diz a lenda, à procura dos três meninos e os sons do fim do mundo. Venham chuva, raio e trovão. Venham todos. Hora grave. Di kudi baxon. Vamos fincar o Mastro no coração de Cabo Verde!
2 comentários:
Belo texto, meu irmão. Já tinha saudades. A quem sabe nunca esquece. Volta mais vezes. A tua ausência é crime de lesa cultura!
Abç
ZCunha
Belos poemas e textos por aqui. fiquei cliente.
A SEIVA
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