quarta-feira, 19 de julho de 2006

A cabeçada do Zidane



Praia de Santa Maria de Esperança

Vejo a Praia de Santa Maria de Esperança e sei que amanhã será outro dia. A mudança terá de ser interior, antes de ganhar a dinâmica de um arquétipo diferente. Platão, de túnica branca, fora à Acrópole suscitar Diálogos. Fora um momento de luz. Milénios depois, esses mortais estão na caverna da Razão. No café, à lânguida esplanada onde a bizantinice reina e os reformados impõem a razão por gritaria, fala-se da cabeçada do Zidane, do recorrente clima de kásu bódi, dos Direitos Humanos, dos claridosos, dos caridosos e dos mendicantes. Cada cidade tem a acrópole que merece, menos Praia que merecia uma opinião pública mais acesa, acutilante e consequente. Os sequestrados do Plateau ficam ali à roda e à sucessão dos dias, esperando que a areia flua da clepsidra. E o pessoal discute os apagões da Electra com atrevida impotência. Pessoalmente, já nem falo mais da Electra, não para evitar susceptibilidades diplomáticas e disparates afins, nem a medo de bilhetinhos ameaçadores, mas porque deixou de interessar. Os apagões continuam, com a falta de água de permeio, e esta é uma afronta quase colonial. Mas continuamos com a nossa luz interior. E a balbuciar a música de Chico Buarque de Hollanda: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”…

Quando as palavras se impõem

Perdoem-me se vos habituei mal, com largas mesuras de cavalheiro e algum hilariante rasgo de permeio. O Pranchinha, meu defeituoso alter-ego, depois de vida tão severina, me deixara em sábias e testamentárias lições quais retornar à pedra, como escrevera o Poeta Mário Fonseca, fosse o mais ontológico da minha narrativa. Doravante, deixarei de adjectivar e serei todo mineral perante a iniquidade. Perdoem-me, de coração. Poderia, vez por outra, guardar as margens: nesta idade não importa ganhar todas as batalhas. Poderia até, diante dos valores mais altos, ficar pelo grito do meu silêncio, que das minhas atitudes seria o mais letal. Todavia, há palavras que se impõem. Rompem a barragem e se afirmam sem margens no açougue das águas. Diante dos altares, fico mais aceso do que as velas e não me ajoelho perante a grandeza. Tão frágeis as grandezas que se decompõem amiúde à minha fé de grão de areia. Não vejo por que as letras, mesmo as mais belas, tenham de recusar o quotidiano, nem razões para que o cronista se esconda sob a máscara de um enorme Carnaval. Aparelhar as palavras e dispô-las em crítica é uma profissão de risco, que eu sei. Exige, para lá do engenho e da arte, uma aventurosa força de vontade perante a realidade. Por conseguinte, este cronista nunca seria aqui um homem de resguardos…

Nós e os grandes arquitectos

Acarinhar a excelência não tem sido apanágio da nossa gente. Cesária Évora é rainha em todo o mundo, menos entre nós, onde a excelência e o sucesso se acanham. No café, à lânguida esplanada, os homens maiúsculos são desmerecidos, para o gáudio dos medíocres. A inveja é a terapia dos desgraçados. Desgraçadamente, com perdão pela redundância. Teríamos tido a oportunidade de um traçado de Óscar Niemayer aí no conjunto da Biblioteca Nacional e perdemo-lo desgraçadamente. Teríamos tido a oportunidade de acoplar à antiga Capitania dos Portos do Mindelo um aquário projectado por Peter Chermaieff e deixamo-lo morrer ainda em maqueta. Também desgraçadamente. Teríamos tido a oportunidade de um projecto assinado por Siza Vieira aí no vale da Cidade Velha e, desgraçadamente, fizemo-lo ofuscar por outras práticas. Trago estes exemplos apenas e tão-só para nos recordarem dos dias que correrem impunemente para o mar. Enfim, coisas e loisas, de um país que ainda não se libertou de todos os seus pesadelos e continua em défice de homenagear um dos seus artistas maiores: o pianista cabo-verdiano-americano Horace Silver. Arquitecto imprescindível do jazz contemporâneo.

N ta mora li

Talvez coubesse dizer que Abraão Vicente, cujo programa televisivo ainda não superou a nossa expectativa, arranhou mesmo a sério algum status quo. Mal proferiu a merecida frase e, abre-te Sésamo, os animais saíram da toca. Furiosos, furiosíssimos. O Carmo e a Trindade, mais a ira do instalado, vociferam pela cabeça do jovem artista. Obviamente que há um pensamento estruturado para a Arte, inclusive a plástica, mas , em strictu sensu, Vicente terá acertado na mosca. Grande cabeçada de Zidane. Um dos sintomas desse hiato, é o corporativismo exagerado de certos barões que se acham imunes à crítica. Hora de molhar as bases desse castelo só de areia. Fui…

Bónus track

Ataque israelita ao Líbano: meia centena de civís mortos. Permitam-me a licença de vomitar. Não tenho estomâgo...

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