Por Filinto Elísio
Glosa, mote et cetera
Estou a vê-los desta janela da alma, como se assistisse ao espectáculo do mundo. Todos desfilam agora que a vida nasceu e ninguém poderá parar este pais nesta dinâmica. Hei-los, jovens do milénio, alegres e ruidosos, no «façam barulho» do Festival do Gamboa. Há uma poesia em tudo isto, há emoção preservada nesta memória de quem soube este pais bem mais deprimido. Quanto caminho percorrido. Estou a vê-los, uns aos beijos, outros aos gritos, e o pais esta cada vez mais na moda. O meu eu existencial fica neste turbilhão de imagens. Exteriores e interiores. A esfera (outra, que não se estratifica) derrama em mim uma estranha contenção. Onde estarás, minha alma plena? O incauto achará que estou numa fase romântica (e se estivesse?), mas não...ando, sim, a recear que o pássaro desenhado deste quadro (reprodução rústica de uma tela de Picasso, explique-se) saia da moldura e se torne realidade. Alguém há de me achar no mínimo esquisito, mas tu saberás que, para lá deste premeditado, eu sou livre. LIVRE!
Belo Horizonte como era
Belo Horizonte era uma cidade linda. Ladeada de serra, num vale verdejante, onde as avenidas corriam ao som da música sacra. Estávamos os dois profanos, sentados no barzinho da Rua Tupis, e lá vinha o repentista com os seus versos de cordel. Ele emparelhava as rimas e vertia o poema com a mesura do garçon no seu serviço de mesa. Ora, ao Parque Municipal a ver os cisnes que lembravam os poemas de Anna Ahknatova, ora, no Palácio das Artes a debater os filmes de Kurosowa. Quando não eram longas conversas sobre a Classificação Decimal Universal ou, então, a professora Janet a jurar que a Biblioteca de Babel, de Jorge Luís Borges, era uma síntese entre a antiga Biblioteca de Alexandria e a moderna Biblioteca do Congresso. E aquele professor de História da Arte que só podia ser maluco! Mas que, ao tempo do mundo polarizado com o vergonhoso Muro de Berlim ao meio, dizia existir em cada cultura um capital especifico de valores. A cultura mantém a identidade humana no que ela tem de singular, dizia. Lembras-te do campus da Pampulha? Do Lago da Pampulha e daquele complexo arquitectónico assinado por Oscar Niemayer? Linda era a cidade de Belo Horizonte...
Os fantasmas da nossa voz
Este país começou a comemorar o seu Trigésimo Aniversario da Independência Nacional. Comemora-o, porque, para lá dos jargões políticos, a soberania aqui foi um dos motores do desenvolvimento. Cabo Verde tem, a meu ver, três recursos estratégicos, todos derivados do seu factor humano, nomeadamente, a cultura, a memória sublimada da fome e a boa imagem externa. A configuração geoestrategica é outro recurso importante, mas a historia diz-nos que, por vezes, ela tem servido para o trafico de escravos e para os apetites da planaterização do mundo. Falando nisso, nem te conto que há dias foi aqui apanhado um barco a zarpar com clandestinos da África Ocidental. A canalha chama-os aqui de mandjacos. Algo me perturba nisso tudo. A cena de quase uma centena de homens negros presos, em situação concentracionária e, depois, deportados em decisão sumaria, tudo isso me deixou pensativo. Isso mexeu com os meus insondáveis precipícios, confesso-te. Devo estar só, sozinho, a lamentar a sorte colectiva desses infelizes, embriagada esta opinião publica pela vitoria do Benfica e pela remota, mas masturbante, possibilidade de virarmos Europa. Agora, baixinho para que a rabentoleira não nos ouça, às vezes, tenho medo dos fantasmas da nossa voz. Ou do nosso pensamento. Outras vezes, estou mais positivo e seguro. Como o Esteves sem metafísica, diria Álvaro de Campos, no Tabacaria. Tu não me entendes. Eu também não me entendo tão categoricamente...
Tudo o que arde
Soube, por intuição apenas, que ainda continuas de vigília. Nessa mesma janela que dá para o mundo. Os barcos, presumo, entram e saem da baia. E nem sei se sabes daqueles últimos versos do Ode Marítima, de Álvaro de Campos. Se sabes, queria, agora como nunca, que dissesses cada palavra desse belo poema até ao derradeiro barco na neblina. E o que queres tu que eu diga? De repente, esse pássaro entra no meu calendário e tudo torna-se muito louco. Carregamos todos esta grande complexidade, um tanto ao quanto halográfica, pois vamos sendo, paradoxalmente, sapiens e demens, faber e ludens, empiricus e imaginarius, economicus e consumans, prosaicus e poeticus...Quando Deus fez o Verbo no começo de tudo, a escrita não surgira no seu frontispício. Espero-te em todos os lugares. Quando não te vejo – de ausência minha ou tua -, pressinto-te nos recônditos momentos de estar. E de ti falo o tempo todo, como se fosses tudo o que arde. Mas, se apareces, às vezes, triunfal e poderosa, outras vezes, temerosa como qualquer mortal, dou comigo a inventar metáforas para que nos teus olhos cintilem as estrelas impossíveis. Despeço-me, sem dizer-te adeus, a cada crónica semanal. Teremos quiçá um encontro marcado. Oh, como apetece exorcisar este castelo de hábitos e certezas. O afecto faz o nosso monge. O mapa oculto tem-no escrito algures cá dentro. E tenho-te pressentido, minha alma plena, desde o começo de tudo. Continuas a ser tudo o que arde...
quinta-feira, 26 de maio de 2005
Auto censura, mais cultura e o livro de estilos
Por Filinto Elísio
1.
Participámos há dias num debate televisivo sobre a Imprensa em Cabo Verde, no quadro da programação da TCV sobre os 30 anos da Independência de Cabo Verde. Debate aceso, interessante e necessário, não apenas pelos tópicos desenvolvidos, mas pela parte pedagógica de se debater as diversas grandes questões. Só que num debate de uma hora, com cinco convidados e meia dúzia de reportagens, muito terá ficado por dizer, razão porque quereremos retomar uma ou outra ideia abordada nesse fórum. Às tantas pela discussão ficou a ideia de que a auto censura não existe senão na cabeça dos jornalistas sem carácter, premissa, na minha opinião, viesada já que os mecanismos censurantes devem ser tratados com mais complexidade e delicadeza. Grosso modo, já que ninguém é absolutamente livre, os mecanismos censurantes condicionam a vida de todo o ser humano, em qualquer tempo e/ou lugar. A par disso, em não havendo censura como instituição em Cabo Verde, permanece ainda, e quiçá por muito tempo, o espectro do limite imposto e interiorizado pelo profissional da comunicação social. Ademais, a censura não é apenas a proibição do discurso, mas é, em larga medida, a obrigação de escrever e de reportar um certo discurso. O Dicionário do Jornalismo, de Fernando Cascais, define a auto censura como «mecanismo psicológico provocado directa ou indirectamente pela pressão envolvente que desencadeia limitações na capacidade de expressão do pensamento ou na liberdade de comunicar através dos media. As suas causas são múltiplas, da pressão política velada a instabilidade de emprego, passando pela ameaça económica de anunciantes ou patrocinadores». A partir de tal perspectiva quem dentre nós não lida com este mecanismo insidioso que atire a primeira pedra.
2.
Houve um tempo em que era necessário apontar o dedo para o outro, buscar, no contexto e na conjuntura, as razões para justificar determinadas insuficiências. Sinceramente que não consideramos ser essa a via mais correcta, nem ser essa a melhor estratégia. Importa-nos, antes de mais, identificar o problema e evidenciá-lo a partir da ideia da sublimação. O jornalismo cabo-verdiano evoluiu muito, e bem, nos últimos 30 anos. O campo mediático alargou-se e hoje há relativa liberdade da imprensa – o espectro mediático, pelos órgãos que oferece e pelas linhas editoriais que apresenta, revela que um enorme espaço de manobra para o jornalista e para o cidadão. A velha pergunta: é a liberdade da imprensa ou do jornalista? Por ora, interessa-nos consolidar a liberdade da imprensa, ficando a liberdade do jornalista (no órgão e na sociedade) para uma outra análise.
3.
Só que, como diz a gíria brasileira, “o buraco é mais em baixo”. Em verdade, a classe dos jornalistas precisa de uma profunda introspecção. Como em muitas profissões, os jornalistas precisam estar mais informados para melhor informar, mais especializados em face das áreas especificas do conhecimento, dominar as novas tecnologias de informação e as técnicas de investigação e ser mais competitivos. Os jornalistas precisam ser mais cultos quando abordam a tensão política na Guiné-Bissau ou o campeonato europeu de futebol, passando pela violência doméstica ou pela mecânica do deficit publico em Cabo Verde. Precisam ser mais profundos a tratar da questão da integração ou da parceria europeia, a olhar o espectro político-partidário e a cobrir a carreira artística de Cesária Évora. Pequenas e grandes agendas, mas que exigem tratamento profissional e de qualidade, em prol da informação e do direito do consumidor. Sem simplismo, nem tábua rasa, o grande problema do jornalismo cabo-verdiano ainda reside no próprio jornalista, uma questão mais de forma e de conteúdo do que propriamente de contexto, por mais que este ultimo aspecto interfira na problemática.
4.
Digamos que o grande desafio do jornalismo cabo-verdiano tem a ver com a qualidade, isto é, com o domínio das regras técnicas e deontológicas, que se inspiram em critérios de bom senso, bom gosto e rigor profissional. A introdução dos livros de estilo nas redacções tornou-se um must e um factor na definição da qualidade e da credibilidade de um meio de comunicação social. Os livros de estilo são orientadores de normas linguisticas, técnicas e éticas que, cumpridas, uniformizam um padrão de qualidade, sem por em causa a criatividade e a liberdade do profissional.
1.
Participámos há dias num debate televisivo sobre a Imprensa em Cabo Verde, no quadro da programação da TCV sobre os 30 anos da Independência de Cabo Verde. Debate aceso, interessante e necessário, não apenas pelos tópicos desenvolvidos, mas pela parte pedagógica de se debater as diversas grandes questões. Só que num debate de uma hora, com cinco convidados e meia dúzia de reportagens, muito terá ficado por dizer, razão porque quereremos retomar uma ou outra ideia abordada nesse fórum. Às tantas pela discussão ficou a ideia de que a auto censura não existe senão na cabeça dos jornalistas sem carácter, premissa, na minha opinião, viesada já que os mecanismos censurantes devem ser tratados com mais complexidade e delicadeza. Grosso modo, já que ninguém é absolutamente livre, os mecanismos censurantes condicionam a vida de todo o ser humano, em qualquer tempo e/ou lugar. A par disso, em não havendo censura como instituição em Cabo Verde, permanece ainda, e quiçá por muito tempo, o espectro do limite imposto e interiorizado pelo profissional da comunicação social. Ademais, a censura não é apenas a proibição do discurso, mas é, em larga medida, a obrigação de escrever e de reportar um certo discurso. O Dicionário do Jornalismo, de Fernando Cascais, define a auto censura como «mecanismo psicológico provocado directa ou indirectamente pela pressão envolvente que desencadeia limitações na capacidade de expressão do pensamento ou na liberdade de comunicar através dos media. As suas causas são múltiplas, da pressão política velada a instabilidade de emprego, passando pela ameaça económica de anunciantes ou patrocinadores». A partir de tal perspectiva quem dentre nós não lida com este mecanismo insidioso que atire a primeira pedra.
2.
Houve um tempo em que era necessário apontar o dedo para o outro, buscar, no contexto e na conjuntura, as razões para justificar determinadas insuficiências. Sinceramente que não consideramos ser essa a via mais correcta, nem ser essa a melhor estratégia. Importa-nos, antes de mais, identificar o problema e evidenciá-lo a partir da ideia da sublimação. O jornalismo cabo-verdiano evoluiu muito, e bem, nos últimos 30 anos. O campo mediático alargou-se e hoje há relativa liberdade da imprensa – o espectro mediático, pelos órgãos que oferece e pelas linhas editoriais que apresenta, revela que um enorme espaço de manobra para o jornalista e para o cidadão. A velha pergunta: é a liberdade da imprensa ou do jornalista? Por ora, interessa-nos consolidar a liberdade da imprensa, ficando a liberdade do jornalista (no órgão e na sociedade) para uma outra análise.
3.
Só que, como diz a gíria brasileira, “o buraco é mais em baixo”. Em verdade, a classe dos jornalistas precisa de uma profunda introspecção. Como em muitas profissões, os jornalistas precisam estar mais informados para melhor informar, mais especializados em face das áreas especificas do conhecimento, dominar as novas tecnologias de informação e as técnicas de investigação e ser mais competitivos. Os jornalistas precisam ser mais cultos quando abordam a tensão política na Guiné-Bissau ou o campeonato europeu de futebol, passando pela violência doméstica ou pela mecânica do deficit publico em Cabo Verde. Precisam ser mais profundos a tratar da questão da integração ou da parceria europeia, a olhar o espectro político-partidário e a cobrir a carreira artística de Cesária Évora. Pequenas e grandes agendas, mas que exigem tratamento profissional e de qualidade, em prol da informação e do direito do consumidor. Sem simplismo, nem tábua rasa, o grande problema do jornalismo cabo-verdiano ainda reside no próprio jornalista, uma questão mais de forma e de conteúdo do que propriamente de contexto, por mais que este ultimo aspecto interfira na problemática.
4.
Digamos que o grande desafio do jornalismo cabo-verdiano tem a ver com a qualidade, isto é, com o domínio das regras técnicas e deontológicas, que se inspiram em critérios de bom senso, bom gosto e rigor profissional. A introdução dos livros de estilo nas redacções tornou-se um must e um factor na definição da qualidade e da credibilidade de um meio de comunicação social. Os livros de estilo são orientadores de normas linguisticas, técnicas e éticas que, cumpridas, uniformizam um padrão de qualidade, sem por em causa a criatividade e a liberdade do profissional.
sábado, 7 de maio de 2005
Hace falta estar ciego
Rafael Alberti
Hace falta estar ciego,
tener como metidas en los ojos raspaduras de vidrio,
cal viva,
arena hirviendo,
para no ver la luz que salta en nuestros actos,
que ilumina por dentro nuestra lengua,
nuestra diaria palabra.
.
Hace falta querer morir sin estela de gloria y alegría,
sin participación de los himnos futuros,
sin recuerdo en los hombres que juzguen el pasado sombrío de la tierra.
.
Hace falta querer ya en vida ser pasado,
obstáculo sangriento,
cosa muerta,
seco olvido.
Hace falta estar ciego,
tener como metidas en los ojos raspaduras de vidrio,
cal viva,
arena hirviendo,
para no ver la luz que salta en nuestros actos,
que ilumina por dentro nuestra lengua,
nuestra diaria palabra.
.
Hace falta querer morir sin estela de gloria y alegría,
sin participación de los himnos futuros,
sin recuerdo en los hombres que juzguen el pasado sombrío de la tierra.
.
Hace falta querer ya en vida ser pasado,
obstáculo sangriento,
cosa muerta,
seco olvido.
Joal, Joal
Leopold Sedar Senghor
Sow, voila Joal.
Joal!
Je me rappelle.
Je me rappelle les signares à l'ombre verte des vérandas
Les signares aux yeux surréels comme un clair de lune sur la grève.
Je me rappelle les fastes du Couchant
Où Koumba N'Dofène voulait faire tailler son manteau royal.
Je me rappelle les festins funèbres fumant du sang des troupeaux égorgés
Du bruit des querelles, des raphsodies des griots.
Je me rappelle les voix paiennes rythmant le Tantum Ergo
Et les processions et les palmes et les arcs de triomphe.
Je me rappelle la danse des filles nubiles
Les choeurs de lutte - oh ! la danse finale des jeunes hommes, buste
Penché élancé, et le pur cri d'amour des femmes _
Kor Siga!
Je me rappelle, je me rappelle...
Ma tête rythmant
Quelle marche lasse le long des jours d'Europe où parfois
Apparait un jazz orphelin qui sanglote sanglote sanglote.
Sow, voila Joal.
Joal!
Je me rappelle.
Je me rappelle les signares à l'ombre verte des vérandas
Les signares aux yeux surréels comme un clair de lune sur la grève.
Je me rappelle les fastes du Couchant
Où Koumba N'Dofène voulait faire tailler son manteau royal.
Je me rappelle les festins funèbres fumant du sang des troupeaux égorgés
Du bruit des querelles, des raphsodies des griots.
Je me rappelle les voix paiennes rythmant le Tantum Ergo
Et les processions et les palmes et les arcs de triomphe.
Je me rappelle la danse des filles nubiles
Les choeurs de lutte - oh ! la danse finale des jeunes hommes, buste
Penché élancé, et le pur cri d'amour des femmes _
Kor Siga!
Je me rappelle, je me rappelle...
Ma tête rythmant
Quelle marche lasse le long des jours d'Europe où parfois
Apparait un jazz orphelin qui sanglote sanglote sanglote.
quarta-feira, 4 de maio de 2005
Uma questão de alma moderna
por Filinto Elísio
Em tributo à “alma moderna” de António de Paula Brito, Pedro Cardoso,Eugénio Tavares e Luis Loff de Vasconcelos
Com o coração na mão
Neste processo de oficialização do crioulo, vozes, aqui e acolá, prós e contra, dirão da sua justiça e contribuirão para prossecução do debate necessário que importa revigorar. O dia é agora e o lugar é aqui. E, antes de mais, importa reafirmar que a padronização da língua (não confundir com imposição) pressupõe obviamente, em exacta dimensão e proporção, a ideia de ser a nossa unidade estribada na nossa língua materna, como ela é falada e cultivada em cada espaço e em cada região do nosso país. Mais do que isso até: em cada comunidade mais ao largo da nossa nação. Em todos os tempos e lugares, o afrontamento da língua nacional se coloca em determinado momento do desenvolvimento. Sobretudo, em momentos de pique do desenvolvimento humanista, como é o que se vive hoje em Cabo Verde, 30 anos passados sobre a nossa Independência Nacional. E o processo de afirmação linguística nunca foi feito em águas serenadas. Língua tem a ver com cultura, poder, afirmação e coisas afins, de modo que envolve princípios e interesses, tanto convergentes como divergentes...
Processo que vem do antanho
Na Europa, por exemplo, a oficialização das línguas nacionais deu-se na sua maioria durante o Renascimento, momento no qual os principais países abandonaram as estruturas - económicas, sociais, culturais - feudais e entram na fase moderna. Com o fim da Idade Média os romances falados passam a afirmar-se como línguas escritas e de cultura; o francês, o italiano, o castelhano, assim como o português, passam a ter, por diferentes processos, o estatuto de línguas oficiais. Era o latim a língua escrita por excelência; as línguas nacionais foram se constituindo, como se depreende, em variedades orais. Elas passam por um processo gradual de legitimação que inclui a homogeneização das formas de escrita e a escolha de uma variedade padrão a ser transcrita. Este processo de ‘padronização’ das variedades “nacionais” vai culminar na formação das línguas nacionais. A formação do português como língua nacional está, naturalmente, contextualizada nesse processo mais geral do desenvolvimento renascentista europeu. A língua portuguesa afirma-se no período dos descobrimentos em que Portugal teve um papel central na Europa, especialmente no que tange às inovações técnicas ligadas à navegação e aos conhecimentos geográficos. É nesse contexto de humanismo que surgem as primeiras gramáticas: a de Fernão de Oliveira em 1536, e a de João de Barros em 1539.
E o quiproquó que aquilo deu?
Também em Portugal, a questão não foi pacífica. As peças em defesa da língua portuguesa tinham de passar por três instâncias censórias antes de serem licenciadas: o Santo Ofício, o Ordinário eclesiástico e o Paço. A gramática de Barros foi listada no index de obras proibidas; Fernão de Oliveira foi preso e condenado pelo Tribunal do Santo Ofício. Isso, para desdramatizarmos um ou outro frisson que o processo de afirmação línguística possa provocar nestas paragens...
A palavra dos outros
Este processo de afirmação línguística, desde o antanho, tem defensores respeitáveis. Vejamos, por exemplo, o que diz a voz abalizada de Aristides Lima, Presidente da Assembleia Nacional, sobre a problemática (é de dar a palavra aos outros, note-se): “O poder político tem urgentemente de fazer mais do que fez até agora. Ele está convocado a, eventualmente, fazer o seu exercício de desalienação cultural. Ele está convocado a reconhecer à língua mais falada pela comunidade cabo-verdiana um estatuto de igual dignidade que o português. Ele está convocado a reconhecer a cada um de nós o direito ao ensino em língua cabo-verdiana, ao lado do direito ao ensino em português; a reconhecer o direito do uso do crioulo em correspondências e documentos oficiais e, ainda, o direito a um presença equitativa do crioulo nos meios de comunicação social do Estado. Isto não é nenhum favor. É tão somente escutar o imperativo do direito humano à língua e reconhecer o direito à igualdade das duas línguas que caracterizam a nossa cultura.”
O bilinguismo é uma valência
O processo de afirmação da língua cabo-verdiana, sobretudo, o processo da construção do bilinguismo cabo-verdiano, prima-se pela busca de um consenso amplo, alargado e participado. Um processo que observa sensibilidades e competências, factores socio-linguísticos e histórico-linguísticos, oportunidades identitárias e de desenvolvimento. Um processo construído de há séculos e que atinge o ápice do debate, agora que o país faz 30 anos da Independência Nacional. O bilinguismo não é um dilema, nem uma dicotomia, mas uma realidade ambivalente com soluções para os desafios de Cabo Verde. Por ser uma ambivalência enriquecedora, importa potenciá-la. A padronização escrita do crioulo e a democratização do português são dois passos importantes no processo de construção nacional. Outro passo, não menos importante, seria a elaboração do crioulo-padrão que deverá se sobrepor à multiplicidade de variantes da língua no arquipélago, constituindo-se como um novo símbolo de unidade no país. Por isso, haja diferença, mas com serenidade; contradição, com boa-fé...em face de um desígnio histórico. E o melhor laboratório para tal padronização é a sua socialização no Ensino (o Superior, sobretudo) e na Comunicação Social. E o seu óbvio reconhecimento de língua paritária na Administração Pública. Outrossim, não estamos em tempo de imposições. Nem as da maioria, obviamente. E muito menos as da minoria, como fora norma nestas ilhas, antes, de colonialismo e, depois, de auto-colonialismo. De facto, o grande Albert Einstein tinha razão ao dizer que “é muito mais fácil dissecar o átomo do que desenraizar preconceitos”. Por isso, faça-se o caminho a caminhar, desintegrando o átomo de certos preconceitos. Numa autêntica (e desta feita genuína) largada de consciencialização. Já ninguém aceita ser auto-colonizado nestas ilhas, venha esta maldição sob a roupagem que vier e este vaticínio da boca de quem vier. É que “o dia nasceu”, como diria o poeta Mário Fonseca...
Em tributo à “alma moderna” de António de Paula Brito, Pedro Cardoso,Eugénio Tavares e Luis Loff de Vasconcelos
Com o coração na mão
Neste processo de oficialização do crioulo, vozes, aqui e acolá, prós e contra, dirão da sua justiça e contribuirão para prossecução do debate necessário que importa revigorar. O dia é agora e o lugar é aqui. E, antes de mais, importa reafirmar que a padronização da língua (não confundir com imposição) pressupõe obviamente, em exacta dimensão e proporção, a ideia de ser a nossa unidade estribada na nossa língua materna, como ela é falada e cultivada em cada espaço e em cada região do nosso país. Mais do que isso até: em cada comunidade mais ao largo da nossa nação. Em todos os tempos e lugares, o afrontamento da língua nacional se coloca em determinado momento do desenvolvimento. Sobretudo, em momentos de pique do desenvolvimento humanista, como é o que se vive hoje em Cabo Verde, 30 anos passados sobre a nossa Independência Nacional. E o processo de afirmação linguística nunca foi feito em águas serenadas. Língua tem a ver com cultura, poder, afirmação e coisas afins, de modo que envolve princípios e interesses, tanto convergentes como divergentes...
Processo que vem do antanho
Na Europa, por exemplo, a oficialização das línguas nacionais deu-se na sua maioria durante o Renascimento, momento no qual os principais países abandonaram as estruturas - económicas, sociais, culturais - feudais e entram na fase moderna. Com o fim da Idade Média os romances falados passam a afirmar-se como línguas escritas e de cultura; o francês, o italiano, o castelhano, assim como o português, passam a ter, por diferentes processos, o estatuto de línguas oficiais. Era o latim a língua escrita por excelência; as línguas nacionais foram se constituindo, como se depreende, em variedades orais. Elas passam por um processo gradual de legitimação que inclui a homogeneização das formas de escrita e a escolha de uma variedade padrão a ser transcrita. Este processo de ‘padronização’ das variedades “nacionais” vai culminar na formação das línguas nacionais. A formação do português como língua nacional está, naturalmente, contextualizada nesse processo mais geral do desenvolvimento renascentista europeu. A língua portuguesa afirma-se no período dos descobrimentos em que Portugal teve um papel central na Europa, especialmente no que tange às inovações técnicas ligadas à navegação e aos conhecimentos geográficos. É nesse contexto de humanismo que surgem as primeiras gramáticas: a de Fernão de Oliveira em 1536, e a de João de Barros em 1539.
E o quiproquó que aquilo deu?
Também em Portugal, a questão não foi pacífica. As peças em defesa da língua portuguesa tinham de passar por três instâncias censórias antes de serem licenciadas: o Santo Ofício, o Ordinário eclesiástico e o Paço. A gramática de Barros foi listada no index de obras proibidas; Fernão de Oliveira foi preso e condenado pelo Tribunal do Santo Ofício. Isso, para desdramatizarmos um ou outro frisson que o processo de afirmação línguística possa provocar nestas paragens...
A palavra dos outros
Este processo de afirmação línguística, desde o antanho, tem defensores respeitáveis. Vejamos, por exemplo, o que diz a voz abalizada de Aristides Lima, Presidente da Assembleia Nacional, sobre a problemática (é de dar a palavra aos outros, note-se): “O poder político tem urgentemente de fazer mais do que fez até agora. Ele está convocado a, eventualmente, fazer o seu exercício de desalienação cultural. Ele está convocado a reconhecer à língua mais falada pela comunidade cabo-verdiana um estatuto de igual dignidade que o português. Ele está convocado a reconhecer a cada um de nós o direito ao ensino em língua cabo-verdiana, ao lado do direito ao ensino em português; a reconhecer o direito do uso do crioulo em correspondências e documentos oficiais e, ainda, o direito a um presença equitativa do crioulo nos meios de comunicação social do Estado. Isto não é nenhum favor. É tão somente escutar o imperativo do direito humano à língua e reconhecer o direito à igualdade das duas línguas que caracterizam a nossa cultura.”
O bilinguismo é uma valência
O processo de afirmação da língua cabo-verdiana, sobretudo, o processo da construção do bilinguismo cabo-verdiano, prima-se pela busca de um consenso amplo, alargado e participado. Um processo que observa sensibilidades e competências, factores socio-linguísticos e histórico-linguísticos, oportunidades identitárias e de desenvolvimento. Um processo construído de há séculos e que atinge o ápice do debate, agora que o país faz 30 anos da Independência Nacional. O bilinguismo não é um dilema, nem uma dicotomia, mas uma realidade ambivalente com soluções para os desafios de Cabo Verde. Por ser uma ambivalência enriquecedora, importa potenciá-la. A padronização escrita do crioulo e a democratização do português são dois passos importantes no processo de construção nacional. Outro passo, não menos importante, seria a elaboração do crioulo-padrão que deverá se sobrepor à multiplicidade de variantes da língua no arquipélago, constituindo-se como um novo símbolo de unidade no país. Por isso, haja diferença, mas com serenidade; contradição, com boa-fé...em face de um desígnio histórico. E o melhor laboratório para tal padronização é a sua socialização no Ensino (o Superior, sobretudo) e na Comunicação Social. E o seu óbvio reconhecimento de língua paritária na Administração Pública. Outrossim, não estamos em tempo de imposições. Nem as da maioria, obviamente. E muito menos as da minoria, como fora norma nestas ilhas, antes, de colonialismo e, depois, de auto-colonialismo. De facto, o grande Albert Einstein tinha razão ao dizer que “é muito mais fácil dissecar o átomo do que desenraizar preconceitos”. Por isso, faça-se o caminho a caminhar, desintegrando o átomo de certos preconceitos. Numa autêntica (e desta feita genuína) largada de consciencialização. Já ninguém aceita ser auto-colonizado nestas ilhas, venha esta maldição sob a roupagem que vier e este vaticínio da boca de quem vier. É que “o dia nasceu”, como diria o poeta Mário Fonseca...
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