quarta-feira, 28 de setembro de 2005

Mil práticas alegres se tocavam

Mil práticas alegres se tocavam;
Risos doces, sutis e argutos ditos,
Que entre um e outro manjar se alevantavam,
Despertando os alegres apetitos;

Luis de Camões. Os Lusíadas. Canto X



Acto de Cultura

Milhares e milhares de estudantes retornam às escolas para o ano lectivo 2005/06. É impressionante o contingente de professores e alunos em Cabo Verde. A educação é o grande leitmotiv do desenvolvimento deste país. Desde sempre e, agora, mais do que nunca. Diante deste novo patamar, em que a quantidade fala alto e a bom som, importa pensar na qualidade da nossa educação. Por uma educação que articule os valores da Cultura e da Cidadania. O desafio que se coloca à educação para a cidadania consistirá em determinar quais as necessidades dos indivíduos em termos da informação, dos saberes, das competências e capacidades para que estes se tornem socialmente empenhados. Da pré-escola ao ensino superior, o desenvolvimento é uma problemática cabralista, pois a luta continua a ser um acto de Cultura.

Últimas Notícias da Solidão

Quando Omar Camilo me convidou a dizer estas palavras sobre «Últimas Notícias da Solidão». Confesso que não aceitei o desafio à primeira. A fotografia não é área que eu domine. Tão pouco tenho sido dono do meu próprio tempo. Só que a estética é um argumento forte. Tem a força de uma requisição civil, se me permitem. E, porque estamos em tempos de emergência da estética, aceitei apresentar o meu amigo Omar Camilo. É forçoso nestes tempos transformacionais que tenhamos, em cada reflexão e acto um sentido de estética, para não vivermos condicionados ao grotesco, ao tosco e ao rude, à ruína do mau gosto e da escuridão da Electra, e o seu blakout no espírito que ele provoca. São 23 trabalhos fotográficos que têm subjacentes, a captação de «pormenores esquecidos do quotidiano das cidades», onde o tempo e a solidão são o contexto temático, como aliás adiantou à imprensa o adido cultural da Embaixada de Portugal, o meu amigo João Neves. «Ultimas notícias da solidão» é a quarta mostra fotográfica que Omar Camilo realiza em Cabo Verde, onde reside desde 2002, desenvolvendo trabalho artístico e de colaboração com instituições cabo-verdianas. As primeiras exposições aconteceram em 2003, mais precisamente em Abril, no Palácio da Cultura, nomeadamente “Luz de Cabo Verde” e “Os barcos regressam em silêncio”. A última exposição, também aconteceu em Abril, mas desde ano. Intitulada “A la puerta de mis sueños”, ela foi apresentada no Centro Cultural Francês da Praia. Com estas palavras fica o meu testemunho sobre a iniciativa deste artista cubano de fino recorte estético.

Na morte do Pranchinha

Acaba de morrer, de causa conhecida, mas mantida sob segredo, o parabólico Pranchinha, esse que, pelas mãos do colunista, dourava os leitores com ditos insubordinados, acto consagrado na própria Constituição quando a ordem vem aziaga e malparada. O defunto, que Deus o tenha, sabia destrinçar quem se governa de quem governa e o Momo, quase bobo, desse cortejo carnavalesco. Incomodativo, fazendo das tripas coração a ver se o bicho pega, ele era na verdade incapaz de matar uma mosca. A máxima do extinto: Deus há de me castigar pela soberba e a arrogância, mas ficar horas a fio a ruminar com o vulgo tamanha demagogia, isso nunca. Arre! Os seus detractores, um dia redimidos, hão de ter a cortesia de lhe visitar o epitáfio. Noblesse oblige…

Safiatu

O Mito, parabólico como sempre, manda-me uma selecção musical interessante. Safiatu, interpretado por Herbie Hancock, Angelique Kidjo e Santana. É tudo o que um pecador precisa para sublimar esta fina mediocridade dos dias. Excelente prenda para o Dia Mundial da Música, já a 1º de Outubro. Prometo fazer uma crónica sobre a música, a mãe de todas as artes. Entrementes, minha musa, deixo-te os versos de Camões que, às tantas pela rama, dizem assim:

Músicos instrumentos não faltavam
(Quais, no profundo Reino, os nus espritos
Fizeram descansar da eterna pena)
Cua voz dua angélica Sirena.

sexta-feira, 9 de setembro de 2005

Soletrado vinho

Mote



Correndo riscos de um dia acabar debaixo da ponte, o escritor escreve, como diria Niechstch, para não morrer de excesso de realidade. Pessoalmente, sem nenhuma pretensão, nem pedantismo, questiono muito a razão por que escrevo. Se calhar, para não ficares impune desta grande tragédia, disse-me Pranchinha. Em verdade, não consigo descortinar de onde veio o meu texto nem para onde vai. Como os números, ele não tem princípio nem fim. Mas garanto-vos que não é um verbo à-toa. Hermético, eu? Ás vezes, com muito visualismo, outras vezes, cheio das zonas de sombra, quando não o fulgor dos instantes, tudo aqui é verdade. Até mesmo a fantasia. Por isso, estou ciente de haver química e cumplicidade com os leitores. Quem lê um texto não o faz impunemente, ora. O amor é o único elemento estruturante em tudo isso. Por sinal, leio, num extraordinário livro, de Ana Luísa Amaral, estes versos: "Talvez só este abismo/Interrompo no mapa o precipício?/No traço dos teus dedos,/rota onde quase cabem: sereia,/o alaúde, o tempo,/ Nessa rota/o suspendo". É que a boa poesia recusa linha programática ou ideológica. Ela é simplesmente (musas somente) o espaço das belas letras. Não há impunidade possível, ó gente amiga!

Soletrado nesse vinho


Impunemente, uma taça desse vinho para a festa do corpo. E o recriar de tantas almas pelos lagares. Muitos lugares de passagem, onde os teus pézinhos, imperceptíveis de tão ágeis, saltitam sobre as hordas das vindimas. No fascínio que seria o vir a melodia, o teu olhar que nem sabe quão de mim é paz, sina e salvação, essas coisas vagarosas que se instalam em nós como uma grude. E mais, esse lacre quente de puro chocolate, que é o meu desejo. Até nas pedras, nas mais puras e nas quase nuas, calhaus apenas que estiram os nossos corpos no tapete dos sonhos. Textura, nervura, o que mais queiras, nada que não roube no coração todo este silêncio que temos sido...



Nova Orleãns


Dá pena ver crianças e velhos a chorarem entre os escombros do que restou de Nova Orleãns, cidade de Louis Armstrong e de Wynton Marsalis, para falar de dois imortais da música americana. As vítimas do furacão Katrina são a fase visível da incompetência, da incúria e do racismo. Não foi o furacão que lhes trouxe a calema. Ele apenas pôs a nu algo que se escondia nos ghettos, numa cidade que se veste de música e de carnaval para o consumo dos turistas. A tragédia há muito que tinha chegado ao delta do Mississipi, desde o vergonhoso tempo da escravatura. E da subsequente segregação. E da actual proletarização do negro. A escravatura, pelo resquícios de hoje, continua pior, muito pior do que o holocausto e é preciso que alguém o diga, sem medo de desagradar os senhores deste mundo. Este inferno, mercê de uma negligência franciscana e ulterior, deve merecer o repúdio de todos. Até porque os furacões têm algo a ver com o aquecimento global e esta catástrofe há de nos lembrar que é preciso assinar o Protocolo de Quioto. Problema mais sério do que o descalabro no mercado petrolífero e na economia globalitária reinante. Haja Humanidade!





Porto da Praia e a segurança nacional



O Porto da Praia, de longe o mais vital do país, está bloqueado, mercê de um quiproquó laboral entre o patronato (Enapor) e o sindicato (SIACSA). Enquanto isso, a fazer jus à Comunidade Portuária da Praia, o país encontra-se à beira de uma ruptura. Os prejuízos são enormes e o cidadão começa a pagar na pele o desentendimento no cais da Praia. Uma crónica de Péricles Barros descreve o caso de um diabético em risco de vida, porque os trabalhadores não autorizam o embarque da carga (entre ela o remédio vital) para a Brava. Nesse excelente artigo, Barros escreveu o seguinte: Imaginem se o presidente do sindicato dos estivadores tivesse um pai a morrer na Brava hoje, por falta de um vaso dilatador? Aí os déreis ou mil-réis a mais, o raio do PCCS, o novo sistema de remuneração que reivindicam deixavam imediatamente de ser uma prioridade; este homem era capaz de matar para enviar as ampolas do medicamento que o pai carece. A par disso, os empresários estão desesperados. E os investidores começam a torcer o nariz. Fala-se em legitimidade dos trabalhadores. Fala-se também da coerência do patronato. Mas nada disso resolve o problema do cidadão contribuinte e eleitor (e muito menos do diabético na Brava). Muitas questões emergem desse cenário, a merecer cuidadoso inquérito sobre as razões e as causas, algumas muito obscuras. E a realidade vai sendo esta: muitos navios aguardam ao largo para a descarga. As ilhas do Fogo, Brava, Maio e Boavista estão desabastecidas e há ruptura de produtos. Alguns navios rumaram à Guiné-Bissau por não poderem fazer operações no porto da capital. Outros foram desviados para São Vicente. Estranhamente, apesar das regulamentações e das práticas serem as mesmas no Porto Grande, as reivindicações dos trabalhadores ali não têm sido paralisantes. Será que há lodo no cais da Praia? Razão para dizer, com o humor a doer, mandem o pai do desgraçado para a ilha da Brava a ver se dói, carago! Havendo esse lodo, seria mais do que hora de o Governo intervir. O Porto da Praia é, no mínimo, uma questão de segurança nacional!