quarta-feira, 20 de abril de 2005

LAURO MOREIRA (em três momentos)

1º Momento (manhosa era a lua, com poesia)

Manhosa era a lua intrometida nas nuvens. Errante, andante, minguante, como nessa música de Princesito. Manhosa a voz de Mayra Andrade, naturalmente. Manhosa a onda que, meia-noite, brincava aos pezinhos nossos na praia do Mangue. Manhosa a manhã que abria, com o sol que ainda nem queimava e cantava o galo imperceptível das recordações. E à cristalina clarabóia que a tarde empresta e à neurastenia barbosiana desta hora, leio agora, com vagar, Poemeto Erótico...de Manuel Bandeira!

É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...

Tão bom poder declamar, ali à beira da piscina, entre gente interessada e bonita desta hora, os versos de Manuel Bandeira. Parecia ali estar a musa mais procurada, de repente reencontrada, aninhada entre os presentes. Dona do meu imaginário, com seus olhos de amêndoa verde e sua pele moreníssima, a cintilar cá dentro a minha infância. Esse atónito e obsessivo desejo. Águas a transbordar cá dentro. E nada está certo neste lugar de não estar.

Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Ali estava ela, a poesia. Estava ali, consubstanciada em tantas outras, sorridente e poderosa. De Manuel Bandeira, Lauro Moreira, embaixador e director da Agência da Cooperação Brasileira, amigo íntimo, companheiro no vate e na palavra, que fora. Mas de Jorge Barbosa, alma gémea de Bandeira, ele nos confessara pena, muita pena mesmo, de não o ter conhecido em vida.

O Embaixador do Brasil em Cabo Verde, Victor Gobato acabava de “transformar” a sua tão diplomática quão deliciosa residência em centro cultural. Espaço de música e poesia. Tertúlia preto no branco. Se há discurso, ele vem solto. Salpicado de humor. Apetece fazer um grande manifesto cultural e marcar, em definitivo, o lugar. E a hora.

Lauro Moreira manda calar o momento (primeiro, como está aqui nomeado) e declama Navio, de Jorge Barbosa. "Leva-me contigo / navio // Mas torna-me a trazer" porque, embora haja em todos nós um incessante navio "que nunca partiu, que nunca partirá", a poesia dita, com tanta mestria e coração, nos petrifica no cais da palavra...

2º Momento (Machado de Assis e eu não estou)


Dia seguinte, para ser mais exacto. Percorro a avenida e na rotunda o bronze de um homem nu. Homem de Pedra, chamam-no. Aprimorado por uma noite de vento, desse vento imaterial que galopa. A intensa avenida de crina silenciosa de quando se sai do trabalho. Apetecia-me pastar noutras paragens. E eu esquecido que Lauro Moreira dava um autêntico recital sobre um dos meus favoritos, Machado de Assis, escritor de sanha atenta e de verve de tanta nomeada. Padre António Vieira e Machado de Assis. Dos modernos, se não estou neurasténico, Gabriel Garcia Marquez e parem vocês de se armar em intelectocratas de café. E vou, ao volante do velho Starlet, balbuciando o Soneto de Amor e Sóis, de Ruy Espinheira Filho:

de água cintilante de tão negra,
eram teus olhos de água luminosa
como só umas raras dessas brisas
chamadas alma, eram os teus olhos

Poesia é uma mulher imaginária que dança. Sob o seu véu, mamas sem a artificialidade de um silicone. Ou não?

Chego a casa, com o fim do dia a pesar sobre os ombros. E a necessária réstia de energia para dar mimos ao Pablo. Roubo-me momentos para ler um conto de Machado de Assis – A Mulher de Preto, no caso. Penso no casal Gobato, que a diplomacia brasileira deve muito e a cabo-verdiana mais ainda. E como estaria Lauro Moreira a discorrer sobre Machado de Assis nesse preciso instante, no Palácio da Cultura Ildo Lobo? O mestre que assim escreveria: Por que acabaremos no primeiro capítulo? perguntou ele; um amigo não é coisa que se despreze, acolhe-se como um presente dos deuses.

3º Momento (hora quase severina)

Mais um dia, para quem quiser fazer o roteiro deste filme...Pude conversar longamente com Lauro Moreira. Sônia Gobato, embaixatriz e anfitriã, coloca-nos na mesma mesa. Éramos quatro nessa mesa: David Hopffer Almada e Dolores Vasconcelos completavam a quadrilha. Falou-se de tudo um pouco. Do Brasil e de Cabo Verde. Os pergaminhos de uma diplomacia sul-sul. Da complementaridade entre os dois países – um tomado de continentalidade, outro lançado na sua insularidade. Ambos com fome do mundo. Um por ser demasiado grande. E outro, demasiado pequeno. A súmula dos dois mundos. O integracionismo antropofágico das nossas culturas. E, obviamente, da poesia. Dos poetas. Do poeta João Cabral de Melo Neto, em particular...

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida

Embarco, como Jorge Barbosa outrora fizera, numa circundante e nostálgica viagem. Alguns Toureiros, de João Cabral de Melo Neto, com fina entoação e sem poetizar seu poema, dito por Lauro Moreira. Arre que não consigo ser cronista bem comportado! Logo agora que entro (sinto-o a cada pulsar) nesta fase “manhosa”...

segunda-feira, 18 de abril de 2005

Alguns Toureiros

de João Cabral de Melo Neto


Eu vi Manolo Gonzáles
e Pepe Luís, de Sevilha:
precisão doce de flor,
graciosa, porém precisa.
Vi também Julio Aparício,
de Madrid, como Parrita:
ciência fácil de flor,
espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,
dos confins da Andaluzia,
que cultiva uma outra flor:
angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,
que cultiva flor antiga:
perfume de renda velha,
de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais deserto,
o toureiro mais agudo,
mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,
de punhos secos de fibra
o da figura de lenha
lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava
o fluido aceiro da vida,
o que com mais precisão
roçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,
à vertigem, geometria
decimais à emoção
e ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,
Manolete, o mais asceta,
não só cultivar sua flor
mas demonstrar aos poetas:

como domar a explosão
com mão serena e contida,
sem deixar que se derrame
a flor que traz escondida,

e como, então, trabalhá-la
com mão certa, pouca e extrema:
sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema

sábado, 9 de abril de 2005

Cais

de Manuel Lopes



Nunca parti deste cais

e tenho o mundo na mão!

Para mim nunca é demais

responder sim

cinquenta vezes a cada não.



Por cada barco que me negou

cinquenta partem por mim

e o mar é plano e o céu azul sempre que vou!

O imperativo da voz de Helberto Helder

Sou eu, assimétrico, artesão, anterior / - na infância, no inferno. [...] Trabalho um nome, o meu nome, a dor do sangue, / defronte / da massa inóspita ou da massa / mansa de outros nomes. / Vinhos enxameados, copos, facas, frutos opacos, leves / nomes, / escrevem-nos os dedos ferozes no papel / pouco, próximo. Tudo se purifica: o mundo / e o seu vocabulário. No retrato e no rosto, nas idades em que, / gramatical, carnalmente, me reparto...