Beethoven é um erro perfeito
De repente, vejo o Pranchinha a comer papel na rua. A chatear a tribo sentada no café. A esmolar ao pessoal que joga xadrez. E, pior ainda, a declamar poemas de Manoel de Barros. Tipo assim:
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.
O Pranchinha a comer papel na rua. A Semana, A Nação, Expresso das Ilhas. Outros papéis. A brochura da Constituição. Tudo é comestível. A sua amada é vegetariana, mas ele assumiu-se ruminante de papel. Como os caprinos que, vez por outra, ludibriam o cosmopolitismo desta cidade e passeiam pelo Plateau. Come até Bíblia e Alcorão. Menos fruto proibido. E no café, um primata que faz as vezes de segurança, diz que os malucos têm de ficar a sete léguas. Para não cansar os clientes. Nada de roçar as intimidades dos homens que bebem a bica sem aurora. Outrora, os bichos eram entendidos sobre o convívio das lagartixas. Agora, talvez porque anda a mandar o aedis egipty, tempo da dengue, das estradas asfaltadas, das águas por virem, fumava uma beata esquecida no chão imundo. A chatear a tribo sentada no café, imaginem. E se ele se banhasse em querosene e deitasse fogo ao seu andrajoso corpo? Para lá do alarido, dos gritos e dos sirenes, de ficar tudo a tresandar churrasco e os não canibais atirarem a primeira pedra, voltaria tudo ao princípio. Ao descomeço…e o cronista que, para enriquecer esta língua de Camões, se entrega a inventar palavras escabrosas. Beethoven é um erro perfeito. E o Pranchinha a comer papel na rua!
Mumificado em Paris
Andando sozinho pelas tortuosas ruas, como fosse magicando que a poesia tenha, por nascente, as sintaxes sem certeza. Tê-la-á, em crescente, também por esta solidão em que se deslumbra o pensamento. Aperceber-me, não por ser Paris, qualquer cidade do mundo ou teus olhos pretos, o quanto se desabrocha o meu sentimento neste tempo. Sou extraído do lugar, mas contido, diria mesmo embebido, no tempo. Perdoa-me, se ao poeta for isto: o verbo abstrair-se-lhe do começo bíblico. Ele vem de não sei onde e vai para o infinito da incerteza. Nenhuma matemática. Gramática nenhuma. Deus tão pouco. Isto é oco e meio à-toa. Leio-te alguns trechos de “A Morte do Ouvidor”, de Germano Almeida, e bebo um pouco de água que trago no cantil. Um grupo de turistas japoneses sai do autocarro e começa a fazer fotografias. O bas-fond de Paris sabe defender-se. O turismo jamais vai conseguir domá-lo. Olho para os pombos que disputam e debicam pequeníssimas côdeas de pão. Mas, afinal, o que se passa aqui? Ando assim, mumificado em Paris (é o que dá rever Tutankhamon, no Museu do Louvre) ou me entrego ao agrafo dos outros cantos? A múmia do jovem faraó será um serial killer? Bem, por aqui fico: mumificado mesmo. Não gosto de dar muita confiança à cidade grande…
Os calares das casas
De repente, as casas começam a morrer. Uma a uma. Vai a turma à urna. Inexoravelmente. Quero dizer, as casas lá ficam, mesmo quando se arruínam. Os lares é que nascem, crescem e morrem. Podem até parir. Crescer e multiplicar. São lagares do ciclo desta vida descontente. À noite, ratos e morcegos roem o silêncio que delas restam. Réstias de nada, com fantasmas. Coaxos de sapos e ladrares de cães vagabundo. E vaga-lumes, grilos e baratas. Bichos pelas brenhas e gravanhas. Espumas ressequidas de onde as vozes são ruidosas. Os lugares são a sua própria decadência. Agora é o formigueiro que se abeira das portas. Pode o poeta pintá-los a fresco, retocá-los com metáforas. As letras, quais blocos de cimento das almas, são o recurso da indigência. No café, sentados à ruminação das horas, a tribo provinciana afoita-se às últimas da Copa do Mundo. It’ s time for Africa, o providencial golo espanhol a lixar a Holanda e o pintor de frescos (um barrilzinho de encomenda) a chatear. Arre que é tão inútil a poesia de os recensear todos. Casas que começam a morrer. Lares, queria eu dizer-vos…
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