quinta-feira, 14 de outubro de 2004

NOIR


A Lenita, Guto, Sergei, Carlos e Maggy

Não quero (hoje, pelo menos) ser lido por aqueles que não sejam mesmo irreverentes. Mesmo que, organizados na sociedade, poetas no âmago. Aos que fazem da estética uma condição de vida. E que são ciosos de noir, solidão existencial, no corte fissurado dos dias. Vinde a mim os iconoclastas, os subversivos a esta hora. Não dos que ainda gritam «O rei vai nu», como se o rei não fosse lindo apenas nu e em plena praça. Irreverentes sejam os leitores desta peça. Vinde, sim, da mais andaluza e severina vida, gramar estas palavras que o vulgo imberbe olha de esguelha e sorve com reserva. Ei-las, abonadíssimas palavras, ao pórtico…Deambulávamos pela Vila do Mangue, vencidos que somos da vida, a verter poesis à beira da madrugada. Em Lisboa, morria o nosso amigo Luís Martins e nós, sem o sabermos, comemorávamos, em altíssimo, os vinte poemas de amor e uma canção desesperada. De Neruda e de todos os pablos deste mundo. Admitíamos ser a praça da vila – ladeada da pequena igreja, da pequena câmara, do pequeno banco e do pequeno mercado – o interior de uma muralha, onde a nossa astuta, e não menos noctívaga, imaginação infiltrava o Cavalo de Tróia. Adoptávamos os bancos públicos como baluartes que se desfazem às metáforas. Trombetas, terão dito alguns, mas deixassem os de Jericó acima da manada. Tomássemos apenas nuvem por Juno e, tal qual a cantadeira, tomássemos este mundo por desaforo. Uma admiradora, que sublinhava amar o poeta e não o homem, passou-me um elogio em papel recortado e o arrazoado desembotava em «pássaro pródigo». Nem pássaro, nem pródigo. Sou tão-somente uma ilha à deriva no vasto cosmos. O quadro é sem moldura e nele de pastarem as vacas, vindas do alto da vila, nada se tornava surrealista. Tudo era demasiado natural. E o seu reverso de sobrenatural. As som bras, a desoras, eram mais pesadas e, ao menos no pensamento, os cavalos relinchavam e arrastavam ferrosas energias que, às tantas, calcinavam as pedras, carbonizando ágeis lagartixas. Também na vila, como em todo o lugar, havia homens pateados com o demo e, como um cancro inexorável, devoravam a vizinhança. Primeiro, as virgens e, havendo nó das debutantes, das mais vividas. Quando não, da meretrícia franja de gente, se a calema finalmente se instalasse. Deambulávamos, pois, armados em poetas de nomeada e alheios à morte que então se sublimava em Lisboa. Digam-me que não se estou errado, mas onde aqui há homens com a irreverência do nosso amigo Luís Martins? Uma vez, ainda as torres da nova babel estavam intactas, sintonizámos a escrita pelo diapasão do nonsense. Em nenhum lugar senão em Nova Iorque se é tão livre e tão cativo, dissera o nosso amigo. E ainda há dias, por telefone, entrei-lhe Alentejo adentro com os mesmos paradoxos. Devo limitar-me a escrever sobre o pão-nosso de cada dia e coisas como as ameaças de greve no porto da Praia? Já me viste a fazer laudas aos intermináveis seminários – Manuel Delgado chama-os de «sentados» -, indiferentes à verdade de sermos um arquipélago de sereias dengosas? Esta também é a várzea de caprinos em delírio, numa (des) ordem que advoga, na calada, um autêntico estado novo. A escrita noir, mas é! Eu a fazer a pauta dos burocratas? Fazê-lo, além da obrigação, era dar a boca à mordaça. Fiem-se na minha prosa de curtirmos, com a cabeça em movimento, esta hora estática. Saibamos tão simplesmente dar um basta a este morrer devagar. Durante o dia, padreco eremita; pela noitinha, vampiro assanhado. Arre que esta coluna não cumpre o estatuto editorial nem a carta de princípios – nem a constitucionalidade vigente – e está disponível a ser, momento a momento, o que é o seu autor…





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