sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Soneto 57

Sendo teu escravo, o que fazer senão atender
Às horas e aos chamados de teu desejo?
Não tenho tempo algum para mim,
Nem serviços a fazer, até que me peças.

Nem ouso repreender a hora do mundo sem fim,
Enquanto eu, minha soberana, sigo tuas horas,
Nem penso que a solidão da ausência seja amarga,
Após dispensar teu servo de teu serviço;

Nem ouso questionar com meus ciúmes
Onde andarás, ou imaginar o que fazes,
Mas, como um triste escravo, sento-me e não penso,

Salvo, onde estás e quão feliz fazes a todos:
Então, que tolo é o amor, que, sob teu jugo
(Embora nada faças), nenhum mal o assombre.

William Shakespeare

domingo, 21 de novembro de 2010

Salmo 136


Nem por abandonadas se calavam
As harpas dos salgueiros penduradas.
Se os dedos dos hebreus as não tocavam,
O vento de Sião, nas cordas tensas,
A música da memória repetia.
Mas nesta Babilónia em que vivemos,
Na lembrança Sião e no futuro,
Até o vento calou a melodia.
Tão rasos consentimos nos pusessem,
Mais do que os corpos, as almas e as vontades,
Que nem sentimos já o ferro duro,
Se do que fomos deixarem as vaidades.
Têm os povos as músicas que merecem.

José de Sousa Saramago

domingo, 14 de novembro de 2010

José & Pilar


Ficámos na primeira fila para o documentário "José e Pilar". Ele era o Nobel e ela o pilar. A Pilar del Rio. Ambos em tela, música magistral, a morte simplificando em seu lento mas certeiro relógio o que se pontifica vida. Depois saímos de mãos dadas para uma pizzaria do meio do caminho e pudemos estar à luz de uma vela vermelha. Estranha sensação - a mesma sentida em Paris, no Les Deux Magotts, sabe-se lá pelas razões que a Razão não explica. Lindo documentário, dizia-te.

O filme, a um tempo, conota à ficção e denota ao factual. As biografias têm essa ambivalência de subverter o que aparenta. Uma ilha de Lanzarote, ventosa e lunar, com o enorme vulcão para subir e a vida em alteridade com a morte. Miguel Gonçalves Mendes conseguiu captar a essência: amor, antes e depois de tudo. A humanidade do amor. Às vezes, sob o disfarce do ateísmo e do olhar materialista (e dialéctico) da vida; outras vezes, rendido ao altar dos cânticos e à fé nas coisas que não se explicam.

Por mistério (ou por falta dele) o Rei D. João III, de Portugal, presenteia o Arqueduque Maximiliano, da Áustria com um elefante. Enquanto a "Viagem do Elefante" se escreve e se corporiza em livro, o documentário desfia a história de Saramago em seus últimos anos de vida e a força de Pilar, que amando o homem, nos permite o José que havia em Saramago. O Nobel...

sábado, 13 de novembro de 2010

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Poema Começado no Fim

Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

Adélia Prado

sábado, 23 de outubro de 2010

Quinta poética

Escrituras Editora
e Casa das Rosas convidam para a

QUINTA POÉTICA

com os poetas convidados
Cláudio Willer (SP), Contador Borges (SP), João Melo (Angola) e Flá Perez (Campinas), com apresentação especial de Vivian Guilhem, do grupo de dança cigana Luna Gitana (SP).


Quinta-feira, 28 de outubro de 2010, a partir das 19h (evento gratuito)

Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos, Av. Paulista, 37 - São Paulo
Informações: (11) 5904-4499
Quinta poética

Mensalmente, a Casa das Rosas abre suas portas para a Quinta Poética, um grande encontro dos amantes da boa poesia, com a presença de poetas consagrados e novos talentos, que têm a oportunidade de apresentar seu trabalho. Intervenções artísticas das mais diferentes expressões, como dança, música, artes plásticas, cultura popular, envolvem a leitura dos poemas. Grandes nomes da poesia, como Álvaro Alves de Faria, Beth Brait Alvim, Carlos Felipe Moisés, Celso de Alencar, Contador Borges, Eunice Arruda, Floriano Martins, Hamilton Faria, Helena Armond, José Geraldo Neres, Raimundo Gadelha, Raquel Naveira, Renata Pallottini, Renato Gonda, entre outros, já estiveram presentes nesses encontros, que são promovidos pela Escrituras Editora e a Casa das Rosas.

Os poetas:

José Geraldo Neres (curador) nasceu em Garça, SP, em 1966. Poeta, roteirista, dramaturgo (com formação em oficinas e cursos de criação textual) e produtor cultural. Publicou o livro de poesia Olhos de barro, (Coleção Orpheu, Multifoco Editora) que recebeu menção especial na 3a edição do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura (2010); e Outros Silêncios, Prêmio ProAC da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo 2008, (Escrituras Editora, 2009) realizado através do programa “Bolsa para autores com obra em fase de conclusão” da Fundação Biblioteca Nacional em 2007/2008; e Pássaros de papel (Dulcinéia Catadora, edição artesanal, SP, 2007). É cofundador do Palavreiros. Integrante do Conselho Gestor & Editorial do Ponto de Cultura Laboratório de Poéticas (Programa Cultura Viva, do MinC). Gestor Cultural. Curador da Sala Permanente de Vídeo/Doc. da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará (2008). Jurado da etapa inicial do Prêmio Portugal Telecom de Literatura (2009). Ministra oficinas literárias, com ênfase em criação literária e estímulo à leitura. blog: http://neres-outrossilencios.blogspot.com

Claudio Willer (São Paulo, 1940) é poeta, ensaísta e tradutor. Seus vínculos são com a criação literária mais rebelde e transgressiva, como aquela representada pelo surrealismo e geração beat. Acaba de lançar Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e poesia, ensaio (Civilização Brasileira, 2010); também publicou Geração Beat (L&PM Pocket, coleção Encyclopaedia, 2009); Estranhas Experiências, poesia (Lamparina, 2004); Volta, narrativa (terceira edição em 2004); Lautréamont - Os Cantos de Maldoror, Poesias e Cartas (Iluminuras, nova edição em 2008), Uivo e outros poemas de Allen Ginsberg (L&PM Pocket, nova edição em 2010), Poemas para leer en voz alta (Andrómeda, Costa Rica, 2007) e ensaios na coletânea Surrealismo (Perspectiva, 2008). É autor de outros livros de poesia – Anotações para um Apocalipse, Dias Circulares e Jardins da Provocação – e da coletânea Escritos de Antonin Artaud, esgotados. Poemas publicados em antologias e periódicos literários, no Brasil e em vários outros países. Presidiu por vários mandatos a UBE, União Brasileira de Escritores. Trabalhou em administração cultural, inclusive como Coordenador da Formação Cultural na Secretaria Municipal de Cultura (1993-2001). Doutor em Letras na USP com Um obscuro encanto: gnose, gnosticismo e a poesia moderna (2008), faz pós-doutorado na USP sobre Religiões Estranhas, Hermetismo e Poesia. Coordena oficinas literárias; ministra cursos e palestras sobre poesia e criação literária. Prepara um livro sobre surrealismo e uma coletânea de ensaios sobre misticismo e poesia.

Contador Borges (São Paulo) leciona Filosofia na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Como acadêmico, concentra a sua pesquisa na relação entre Erotismo e Literatura. Poeta, ensaísta e dramaturgo, publicou as obras: Angelolatria (1997), O Reino da Pele (2003), Wittgenstein! (2007) e A Morte dos Olhos (2007). Traduziu Aurélia, de Gérard de Nerval, O Nu perdido e outros poemas, de René Char, A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade, Diálogo entre um padre e um moribundo, do mesmo autor, entre outros livros. Publicou diversos artigos e poemas em jornais e revistas no Brasil e no exterior. É organizador e coordenador da Coleção Pérolas Furiosas da Editora Iluminuras, dedicada às obras do Marquês de Sade.

João Melo nasceu em 1955, em Luanda (Angola), onde vive atualmente. Melo é um dos autores africanos mais estudado nas universidades do Brasil, onde morou de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa, É jornalista, escritor, professor universitário e deputado à Assembleia Nacional de Angola. Dirige atualmente a revista África 21. Poeta, contista, cronista e ensaísta, publicou doze livros de poesia, cinco de contos e um de ensaios. Editado habitualmente em Angola, Portugal e Itália, publicou em 2008, no Brasil, o seu livro de contos Filhos da Pátria, pela Editora Record. Tem vários prêmios, entre eles o Prêmio Nacional de Cultura e Artes 2009, na categoria de literatura, pelo conjunto da sua obra. É membro fundador da União de Escritores Angolanos, da qual já foi secretário geral, presidente da Comissão Directiva e presidente do Conselho Fiscal.



Flá Perez (Flávia Perez) nasceu em 1968 no Rio de Janeiro e mora em Campinas, SP. Tem Mestrado em Microbiologia Agrícola pela USP. Publicou o livro Leoa ou Gazela, Todo Dia é Dia Dela. Participou da Antologia do Bar do Escritor em 2009. Teve poemas escolhidos para publicação no Concurso Nacional Cassiano Nunes, promovido pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília e no Projeto Pão e Poesia 2009.

Vivian Guilhem (São Paulo) é professora de Dança Cigana e outras modalidades. Coordena o grupo de dança cigana Luna Gitana há mais de 10 anos e ministra cursos de dança e cultura cigana em sua loja Alemdalenda na região de Pinheiros. Além de empresária, apresenta um programa sobre cinema na All TV, pela internet. Maiores informações: www.vivianguilhem.webs.com e www.alemdalenda.com.br

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

domingo, 10 de outubro de 2010

Exercícios para a fragmentação de uma praça

Tenho por mim que se anda a estragar a praça. A nossa praça que, ao tempo, fazia de ágora, porque, em parelha, a cidade poderia ser polis. Com cidadania e tudo. Arménio Vieira, uma espécie de selo poético nesse entremeio, vaticinara-lhe um poema promonitório – falou até em bomba termonuclear! - e não é que lhe desmontam a esplanada, aí mesmo à beira do correto. Com a bomba do decreto. O pessoal não sabe que temos uma praça temática, relíquia urbanística, pensada para recriar uma cidade. Quadrangular, tendo por eixos a rua do ouro e/ou da banca, a rua da câmara e do povo, a rua da fé e da justiça, e a rua dos sobrados, ela própria lúdica sendo um baralho de cartas: valete, ouro, paus e espadas. Ao centro, o chafariz e a gurita, pela música clamando os cidadãos e pelas água renovando o convívio. Por um triz, éramos civilizados. Passávamos pelo processo civilizatório. Tempo andado, chega cá para isto um que diz: vamos alfaltar o miolo da praça e, por desgraça, desenha-lhe motivos de pano de terra e, como tudo acaba em vernáculo e em exótico, houve até palmas. Adiante, bobinando o tempo, o pessoal da festarola ergue-lhe outro um urinol que é um mastadonte, destoando a estética inicial dos que realmente pensavam a cidade. Demais faz mal e subentendam vocês aqui um grande palavrão mais sublime, de longe mais sublime, que o hino nacional. Agora sim, apetece tirar para fora o coiso e urinar nos cravos. Não deve ser proibido. Pode-se até defecar. Vomitar. Vomite-se quem puder, caramba. Neste besteirol de advogados, se a constituição for omissa, estaremos no reino do permitido…

MARINA SILVA PODE REFORÇAR O PROJETO DO NOVO BRASIL

Leonardo Boff *


É aqui que entra a missão de Marina Silva com seus cerca de vinte milhões de votos. Ela mostrou que há uma faceta significativa do eleitorado que quer enriquecer o projeto da democracia social e popular. Esta precisa assumir estrategicamente a questão da natureza, impedir sua devastação pelas monoculturas, ensaiar uma nova benevolência para com a Mãe Terra

O Brasil está ainda em construção. Somos inteiros, mas não acabados. Nas bases e nas discussões políticas sempre se suscita a questão: que Brasil finalmente queremos?

É então que surgem os vários projetos políticos elaborados a partir de forças sociais com seus interesses econômicos e ideológicos com os quais pretendem moldar o Brasil.

Agora, no segundo turno das eleições presidenciais, tais projetos repontam com clareza. É importante o cidadão consciente dar-se conta do que está em jogo para além das palavras e promessas e se colocar criticamente a questão: qual dos projetos atende melhor às urgências das maiorias que sempre foram as "humilhadas e ofendidas" e consideradas "zeros econômicos" pelo pouco que produzem e consomem.

Essas maiorias conseguiram se organizar, criar sua consciência própria, elaborar o seu projeto de Brasil e digamos, sinceramente, chegaram a fazer de alguém de seu meio, Presidente do país, Luiz Inácio Lula da Silva. Foi uma virada de magnitude histórica.

Há dois projetos em ação: um é o neoliberal ainda vigente no mundo e no Brasil, apesar da derrota de suas principais teses na crise econômico-financeira de 2008. Esse nome visa dissimular aos olhos de todos, o caráter altamente depredador do processo de acumulação, concentrador de renda que tem como contrapartida o aumento vertiginoso das injustiças, da exclusão e da fome. Para facilitar a dominação do capital mundializado, procura-se enfraquecer o Estado, flexibilizar as legislações e privatizar os setores rentáveis dos bens públicos.

O Brasil sob o governo de Fernando Henrique Cardoso embarcou alegremente neste barco a ponto de no final de seu mandato quase afundar o Brasil. Para dar certo, ele postulou uma população menor do que aquela existente. Cresceu a multidão dos excluídos. Os pequenos ensaios de inclusão foram apenas ensaios para disfarçar as contradições inocultáveis.

Os portadores deste projeto são aqueles partidos ou coligações, encabeçados pelo PSDB que sempre estiveram no poder com seus fartos benesses. Este projeto prolonga a lógica do colonialismo, do neocolonialismo e do globocolonialismo, pois sempre se atém aos ditames dos países centrais.

José Serra, do PSDB, representa esse ideário. Por detrás dele estão o agrobusiness, o latifúndio tecnicamente moderno e ideologicamente retrógrado, parte da burguesia financeira e industrial. É o núcleo central do velho Brasil das elites que precisamos vencer, pois elas sempre procuram abortar a chance de um Brasil moderno com uma democracia inclusiva.

O outro projeto é o da democracia social e popular do PT. Sua base social é o povo organizado e todos aqueles que pela vida afora se empenharam por um outro Brasil. Este projeto se constrói de baixo para cima e de dentro para fora.

Que forjar uma nação autônoma, capaz de democratizar a cidadania, mobilizar a sociedade e o Estado para erradicar, a curto prazo, a fome e a pobreza, garantir um desenvolvimento social includente que diminua as desigualdades. Esse projeto quer um Brasil aberto ao diálogo com todos, visa a integração continental e pratica uma política externa autônoma, fundada no ganha-ganha e não na truculência do mais forte.

Ora, o governo Lula deu corpo a este projeto. Produziu uma inclusão social de mais de 30 milhões, e uma diminuição do fosso entre ricos e pobres, nunca assistido em nossa história. Representou em termos políticos uma revolução social de cunho popular, pois deu novo rumo ao nosso destino. Essa virada deve ser mantida, pois faz bem a todos, principalmente às grandes maiorias, pois lhes devolveu a dignidade negada.

Dilma Rousseff se propõe garantir e aprofundar a continuidade deste projeto que deu certo. Muito foi feito, mas muito falta ainda por fazer, pois a chaga social dura já há séculos e sangra.

É aqui que entra a missão de Marina Silva com seus cerca de vinte milhões de votos. Ela mostrou que há uma faceta significativa do eleitorado que quer enriquecer o projeto da democracia social e popular. Esta precisa assumir estrategicamente a questão da natureza, impedir sua devastação pelas monoculturas, ensaiar uma nova benevolência para com a Mãe Terra. Marina em sua campanha lançou esse programa. Seguramente se inclinará para o lado de onde veio, o PT, que ajudou a construir e agora a enriquecer. Cabe ao PT escutar esta voz que vem das ruas e com humildade saber abrir-se ao ambiental. Sonhamos com uma democracia social, popular e ecológica que reconcilie ser humano e natureza para garantir um futuro comum feliz para nós e para a humanidade que nos olha cheia de esperança.

* Leonardo Boff, é teólogo, filósofo e escritor.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Cidade

Não será assim, tão de chofre, sem civilidade, nem genealogia, que se ocupa a cidade dos meus cuidados. Obviamente, Praia, como nenhuma outra, a remoer cá dentro. Complacência dos deuses e seus devotos? Caramba, sou ateu. Mesuras aos reis e seus súbditos? Arre, sou anarquista. Querem-na cosmopolita, uns; sonham-na pacata, outros. Gozá-la, seviciá-la e esventrá-la, todos. Metrópole única (mentalmente metropolizada), diferente, sui generis. Seus terroristas dorminhocos. Seus líderes viciados. Os munícipes desatentos transitam pelo Platô. Raros turistas merdosos. Pacóvios são os proclamados senhores destas achadas! Nero queimaria isto sem pestanejar. Tudo a arder e o crepitar de estrelas nessa bandeirola da tardia república. Crepite e carbonize, pois, a constelação toda. Assim tão de chofre, não…

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Para o meu filho Pablo

Meus oito anos


Oh! que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar - é lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!

Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

Casimiro de Abreu

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

20 poemas de amor y una canción desesperada

Poema 1





Cuerpo de mujer, blancas colinas, muslos blancos,
te pareces al mundo en tu actitud de entrega.
Mi cuerpo de labriego salvaje te socava
y hace saltar el hijo del fondo de la tierra.


Fui solo como un túnel. De mí huían los pájaros
y en mí la noche entraba su invasión poderosa.
Para sobrevivirme te forjé como un arma,
como una flecha en mi arco, como una piedra en mi honda.


Pero cae la hora de la venganza, y te amo.
Cuerpo de piel, de musgo, de leche ávida y firme.
Ah los vasos del pecho! Ah los ojos de ausencia!
Ah las rosas del pubis! Ah tu voz lenta y triste!


Cuerpo de mujer mía, persistiré en tu gracia.
Mi sed, mi ansia sin límite, mi camino indeciso!
Oscuros cauces donde la sed eterna sigue,
y la fatiga sigue, y el dolor infinito.


Pablo Neruda

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Aguares

Os bulícios, bocados de quietude, são poemas
mesmo quando nem versos, sejam só fonemas,
verbos diversos, acaso das flores, outras cores,
abelhas de medrar mel, aguares e eu nisto tudo...

Filinto Elísio

sábado, 21 de agosto de 2010

Mãe Ilha


Nessa manhã as garças não voaram
E dos confins da luz um deus chamou.
Docemente teus cílios se fecharam
Sobre o olhar onde tudo começou.
A terra uivou. Todas as cores mudaram
O mar emudeceu. O ar parou.
Escuros véus de pranto o sol taparam
De azáleas lívidas a ilha se cercou.
A que pélago o esquife te levava?
Não ao termo. A não chorar os mortos.
Teu sumo espiritual florido ensina.
E se o mundo em ti principiava,
No teu mistério entre astros absortos,
Suavemente, ó mãe, tudo termina.


 Natália Correia

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Girassol

Girassol
Rasga a tua indecisão
E liberta-te.

Vem colar
O teu destino
Ao suspiro
Deste hirto jasmim
Que foge ao vento
Como
Pensamento perdido.

Aderido
Aos teus flancos
Singram navios.

Navios sem mares
Sem rumos
De velas rotas.

Amanheceu!

Orça o teu leme
E entra em mim
Antes que o Sol
Te desoriente

Girassol!
 
Corsino Fortes

domingo, 1 de agosto de 2010

Ventana sobre el cuerpo

La Iglesia dice: El cuerpo es una culpa.
La ciencia dice: El cuerpo es una máquina.
La publicidad dice: El cuerpo es un negocio.
El cuerpo dice: Yo soy una fiesta.

Eduardo Galeano

sábado, 31 de julho de 2010

Beethoven é um erro perfeito



Beethoven é um erro perfeito


De repente, vejo o Pranchinha a comer papel na rua. A chatear a tribo sentada no café. A esmolar ao pessoal que joga xadrez. E, pior ainda, a declamar poemas de Manoel de Barros. Tipo assim:

Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os ocasos.

O Pranchinha a comer papel na rua. A Semana, A Nação, Expresso das Ilhas. Outros papéis. A brochura da Constituição. Tudo é comestível. A sua amada é vegetariana, mas ele assumiu-se ruminante de papel. Como os caprinos que, vez por outra, ludibriam o cosmopolitismo desta cidade e passeiam pelo Plateau. Come até Bíblia e Alcorão. Menos fruto proibido. E no café, um primata que faz as vezes de segurança, diz que os malucos têm de ficar a sete léguas. Para não cansar os clientes. Nada de roçar as intimidades dos homens que bebem a bica sem aurora. Outrora, os bichos eram entendidos sobre o convívio das lagartixas. Agora, talvez porque anda a mandar o aedis egipty, tempo da dengue, das estradas asfaltadas, das águas por virem, fumava uma beata esquecida no chão imundo. A chatear a tribo sentada no café, imaginem. E se ele se banhasse em querosene e deitasse fogo ao seu andrajoso corpo? Para lá do alarido, dos gritos e dos sirenes, de ficar tudo a tresandar churrasco e os não canibais atirarem a primeira pedra, voltaria tudo ao princípio. Ao descomeço…e o cronista que, para enriquecer esta língua de Camões, se entrega a inventar palavras escabrosas. Beethoven é um erro perfeito. E o Pranchinha a comer papel na rua!

Mumificado em Paris

Andando sozinho pelas tortuosas ruas, como fosse magicando que a poesia tenha, por nascente, as sintaxes sem certeza. Tê-la-á, em crescente, também por esta solidão em que se deslumbra o pensamento. Aperceber-me, não por ser Paris, qualquer cidade do mundo ou teus olhos pretos, o quanto se desabrocha o meu sentimento neste tempo. Sou extraído do lugar, mas contido, diria mesmo embebido, no tempo. Perdoa-me, se ao poeta for isto: o verbo abstrair-se-lhe do começo bíblico. Ele vem de não sei onde e vai para o infinito da incerteza. Nenhuma matemática. Gramática nenhuma. Deus tão pouco. Isto é oco e meio à-toa. Leio-te alguns trechos de “A Morte do Ouvidor”, de Germano Almeida, e bebo um pouco de água que trago no cantil. Um grupo de turistas japoneses sai do autocarro e começa a fazer fotografias. O bas-fond de Paris sabe defender-se. O turismo jamais vai conseguir domá-lo. Olho para os pombos que disputam e debicam pequeníssimas côdeas de pão. Mas, afinal, o que se passa aqui? Ando assim, mumificado em Paris (é o que dá rever Tutankhamon, no Museu do Louvre) ou me entrego ao agrafo dos outros cantos? A múmia do jovem faraó será um serial killer? Bem, por aqui fico: mumificado mesmo. Não gosto de dar muita confiança à cidade grande…

Os calares das casas

De repente, as casas começam a morrer. Uma a uma. Vai a turma à urna. Inexoravelmente. Quero dizer, as casas lá ficam, mesmo quando se arruínam. Os lares é que nascem, crescem e morrem. Podem até parir. Crescer e multiplicar. São lagares do ciclo desta vida descontente. À noite, ratos e morcegos roem o silêncio que delas restam. Réstias de nada, com fantasmas. Coaxos de sapos e ladrares de cães vagabundo. E vaga-lumes, grilos e baratas. Bichos pelas brenhas e gravanhas. Espumas ressequidas de onde as vozes são ruidosas. Os lugares são a sua própria decadência. Agora é o formigueiro que se abeira das portas. Pode o poeta pintá-los a fresco, retocá-los com metáforas. As letras, quais blocos de cimento das almas, são o recurso da indigência. No café, sentados à ruminação das horas, a tribo provinciana afoita-se às últimas da Copa do Mundo. It’ s time for Africa, o providencial golo espanhol a lixar a Holanda e o pintor de frescos (um barrilzinho de encomenda) a chatear. Arre que é tão inútil a poesia de os recensear todos. Casas que começam a morrer. Lares, queria eu dizer-vos…

sábado, 24 de julho de 2010

Proposição

Ano a ano
crânio a crânio
Rostos contornam
o olho da ilha
Com poços de pedra
abertos
no olho da cabra

E membros de terra
Explodem
Na boca das ruas
Estátua de pão s6
Estátuas de pão sol
Ano a ano
crânio a crânio
Tambores rompem
a promessa da terra Com pedras
Devolvendo às bocas
As suas veias
De muitos remos

Corsino Fortes

sábado, 10 de julho de 2010

Je t'aime

Je t'aime pour toutes les femmes que je n'ai pas connues
Je t'aime pour tous les temps où je n'ai pas vécu
Pour l'odeur du grand large et l'odeur du pain chaud
Pour la neige qui fond pour les premières fleurs
Pour les animaux purs que l'homme n'effraie pas
Je t'aime pour aimer
Je t'aime pour toutes les femmes que je n'aime pas


Qui me reflète sinon toi-même je me vois si peu
Sans toi je ne vois rien qu'une étendue déserte
Entre autrefois et aujourd'hui
Il y a eu toutes ces morts que j'ai franchies sur de la paille
Je n'ai pas pu percer le mur de mon miroir
Il m'a fallu apprendre mot par mot la vie
Comme on oublie


Je t'aime pour ta sagesse qui n'est pas la mienne
Pour la santé
Je t'aime contre tout ce qui n'est qu'illusion
Pour ce coeur immortel que je ne détiens pas
Tu crois être le doute et tu n'es que raison
Tu es le grand soleil qui me monte à la tête
Quand je suis sûr de moi.

Paul Éluard

domingo, 27 de junho de 2010

Palavra

(interpretado por Mayra Andrade)




Palavra:
Cruzado é jogo
Trocado é intriga
Dado é cumprido
Faltado é falsia
D´amor é poesia


De Rei é Lei
De Senhor, Ámen
Mal scrito é erro
Bem scrito é arte
Firmado é promessa
Di bô é simplesmente um língua na nha boca


Palavra:
De vivo é vento
De morto é herança
De honra é aval
Às vezes é lamento
De ordi é pa grita


Gritado é força
Às vez é fraqueza
Rimado é beleza
Rumado é blá-blá
Xintido é oraçon
Di bô é simplesmente um língua na nha boca


Palavra:
A favor é argumento
Cantado é finaçon
Titubeado é gaguez
Truncado é mudez
Calado, hmm! Desconfia


De Romeu é Julieta
De Quixote é loucura
De Buda é sapiência
De Fidel, persistência
Di meu podi ser banal
Ma di bô é simplesmente um língua na nha boca

Mário Lúcio Sousa

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Haï-kaï

Une plume donne au chapeau

Un air de légèreté
La cheminée fume.

Paul Éluard

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Parâmetro

Deus é mais belo que eu.

E não é jovem.
Isto sim, é consolo.

Adélia Prado

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Memorial do Convento

«Entram com el-rei dois camaristas que o aliviam das roupas supérfluas, e o mesmo faz a marquesa à rainha, de mulher para mulher, com ajuda doutra dama, condessa, mais uma camareira-mor não menos graduada que veio da Áustria, está o quarto uma assembleia, as majestades fazem mútuas vénias, nunca mais acaba o cerimonial, enfim lá se retiram os camaristas por uma porta, as damas por outra, e nas antecâmaras ficarão esperando que termine a função, para que el-rei regresse acompanhado ao seu quarto (...) e venham as damas a este aconchegar D. Maria Ana (...).

Vestem a rainha e o rei camisas compridas, que pelo chão arrastam (...). D. João V conduz D. Maria Ana ao leito, leva-a pela mão como no baile o cavaleiro à dama, e antes de subirem os degrauzinhos, cada um de seu lado, ajoelham-se e dizem as orações acautelantes necessárias, para que não morram no momento do acto carnal, sem confissão, para que desta nova tentativa venha a resultar fruto (...)»


José Saramago
in Memorial do Convento

quarta-feira, 16 de junho de 2010

terça-feira, 15 de junho de 2010

O último poema

“O último poema deve ser muito parecido ao susto do primeiro”

Airton Monte

 
Me_xendo no baú

Mal termino o último poema do “Me_xendo no baú. Vasculhando o U”, ponho-me à trepidação de to enviar, esperando que nele te revejas em cada palavra dita e em cada sentença ainda por dizer. A sintaxe do desejo, afoita à saga da solidão, permite-se também ao tantra contigo e eu (dizê-lo de a Caixa da Pandora estar aberta) não tem o limite da compostura. Os tais labirintos de água, terra, fogo, ar, de que fala José Luís Peixoto. É o sentimento que vira e mexe, sem pieguice, todavia. É apenas uma pluma suspensa no ar e isso não se explica. Nem mesmo ao leitor…


O seu ao seu dono

Está-se a mesa a falar da religiosidade. Somos todos de fé - muita, demorada e sincrética fé. Dispensando liturgias. Alguém propõe falar o Criador e a criatura. A sua cria. O meu amigo Crisolino, “glamouroso” de papel passado, dizia que Deus operou meio milagre ao criar o homem. Já no caso da mulher, o seu ao seu dono, Ele operou milagre e meio. Fê-lo, mais por cálculo da costela do que ilusão de obra-prima. Fê-lo e deixou a obra fazer seu percurso sozinho. Existencialmente…


Morreu-me Lisboa Ramos

À beira de lançar um romance em Lisboa (estava mesmo a falar com os jornalistas sobre ser ou não ser romance), morre-me Aguinaldo Lisboa Ramos, cabo-verdiano de primeira água e cavalheiro de finíssima estampa. Quando me morre alguém – gente de trato amigo, ainda que esparso e caldeado na diferença etária, como é o caso -, as aves da metáfora arribam à minha igreja. Não a dos altares pesarosos, mas aquela interior que se levita para o vão da Beleza. Apesar de agnóstico juramentado e avassalado, tenho os meus momentos de crença e agora, com esta triste notícia de falecimento, os dias ficam-me cada vez mais pobres. Saio para a primaveril varanda lisboeta e identifico, entre vários cravos, um que (por crença genitora de poeta) deve ser o “belo espírito” de Aguinaldo Lisboa Ramos…

domingo, 13 de junho de 2010

la_dainha

novena
açucena de três vozes
ó la_dainha que o mundo é longe;


música
o que é do U
vasculhado na língua das águas
no ín_fimo de cada gota
e no c_ardume dos peixes de tanto mar


que ao di_luviano e va_zante líquido
de placenta silen_ciosa tudo se resume?


- vozes de vasculhando o U!

Filinto Elísio
in Me_xendo no baú. Vascilhando o U

quinta-feira, 10 de junho de 2010

São Vi_cente

versejo-te com o v_ento e a t_erra
na sombra vã de que já foi luz;

versejo-te sendo este desejo
uma estranha forma de cruz;

(pedaço de céu & braço de mar
coxas da ilha polegares de nada)

versejo-te como um vagabundo
que ronda a cidade e mata a fome;
em qualquer esquina e canta
(na boca da noite) esse hino
que faz relinchar mulheres
donas de um cio de chicotes
vibra_dores & de_cotes:

ó sedosa lua efémera
ó la_pso de tempo
ó la_pso de tento
tentações…

Filinto Elísio
in Me_xendo no baú. Vasculhando o U

Sa_l

cruci_fixo

colar caído em teu deco_te
fosse teu cangote esta encruzilhada
o meu primeiro projecto de sombra
o de perscrutar luz em ti
escondida antes da aurora


no areal da Hera
alcova de algum peca_do


montava eu o puzzle de outrora
- incauto da morte achei-a
desta eternidade -
e teus demónios foram apanhados de súbito


lar_gados como bode ao sabor do monte
queríamos nós cabriolar fêmeas em tempo de es_tio


morreu-me tão estival momento


punha-me nele de cabra_lina pedra
meus geni_tais em clementina
o que explicava à idade de cardeal
um espelho fatal derramado à face
e as rugas me aboca_nharem olhos
ba_nharem também minha sede de pajem
& garga_lharem que a vida são dois dias


sois deuses escondidos que eu sei
sois tantos orixás em fila


os búzios jogado_s sobre os panos
dizem-me lobo-guará perdido na cidade
cansada fera
suplicando à lua esmaecida
lá onde o mar des_gasta a ilha
mas a pedra car_comida sobra
des_nuda-se ela que nem puta
pulsando a tarde com poesia


sois mais que anjo atrás da porta
sois aquele que salva no armário


sinto-te
& não temas o traído en_raivecido
te imponha
& revire o jogo de cartas marcadas


não me olhes tão assim
meu cúmplice
que o espelho é isso: vermo-nos nele


esse vaivém de mar
mar que me banha b_enta e s_agrada
pressinto-o a cada gota
[oceano tanto – infinita água tua
canto à-toa teu mar_ulhar
sois quanta escondida em banho
cristais de espuma nos meus cantos
meu navio sulca tuas nuvens]


alado navio este meu
e sa_l tem disso:
miragens enfim!

Filinto Elísio
in Me_xendo no baú. Vasculhando o U

quarta-feira, 9 de junho de 2010

San_tiago

por primeiro
(antes do verbo)
último te quer_ia
tiago profa_no
ao sabor da carne;


louvo-te homem
como um to_milho
pão que sai do for_no
e tosta_do
no aguar da fome;


de tanta boca
sugar teu corpo
teus me_andros
tuas grutas
sorver teus poços
demo_rar no osso
e no caroço;


morrer sempre
aos teus montes
serras e cutelos
morrer às achadas tuas
e fajãs querendo ao verde
(ó minha festa!)
morrer ao teu regaço;


(lamber-te à fome
com ânsia mais que à fome)
com ciência que suga
essência do S
de sant_o
e de pecad_o;

diz-me das especiarias
com que te como
ó portentoso
diz-me dos tem_peros
com que te de_voro
meu apolo
(antes do verbo)
sussurra-me tudo;


o que me cani_baliza
e me incendeia à vida:


ser filho teu
e da poesia…

Filinto Elísio
in Me_xendo no baú. Vasculhando o U

terça-feira, 8 de junho de 2010

En_luada

despes-me

en_luada
(postos astros em zodíaco)


entalas-me
encruada
(canibalizado de tua carne)


…e não dirás contra-pecados
que não sejam novenas
estas;


despes-me
como quem navega
(que não tem outro sossego)


assaltas-me
assim à desarmada
(tanto me despenham sucos
quanto me salpicam rugas)


…guardarás luas e suas luzes
que as sombras estas lhe são
árvores;


frondosas folhas
tê-las em nós
- da copa à raiz, amplexo
que é da terra ao céu


meu nó do S
meu nu do U
nódulo 
e
verde frutal
V de nó vital


- menu
de te deli_ciar.

Filinto Elísio
in Me_xendo no baú. Vasculhando o U

sábado, 5 de junho de 2010

Traduzir-se

Uma parte de mim

é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.


Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.


Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.


Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.


Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.


Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.


Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?


Ferreira Gullar

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Tabu_leiro

o poeta busca a letra
a musa
a kilo k vc gosta;

ele:
vas_culha
de leve
a letra u

ela:
bor_bulha
de breve
½ d_ode marítima
1 verso drummoniano
2 pessoas de fingir

da dor deveras
ele
vira múltiplos de alma
ela
dita saudade dada

              (acrecentam-se-lhes:
                              cifras
                                  ânforas com palavras
                                      algumas metáforas
                                           & outros paladares)

o mais
(receituário deste tabu_leiro)
pão de beijo
...ooooops, calami! Lapsus linguae
(tropiezo involuntário...mineira é fogo)
seria:
pão de queijo!

Filinto Elísio
in Me_xendo no baú. Vasculhando o ú.
                                       

terça-feira, 1 de junho de 2010

Dois e dois: quatro

Como dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena


Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena

como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.

Ferreira Gullar

segunda-feira, 31 de maio de 2010

De nascer assim sem alvoroço


   Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.
Guimarães Rosa


Ele nascera num ano que nem digo, mas (fala-se tanto) de um mês de nuvens baixas. Fala-se também do plantio ansiando as águas. E do mulherio querendo outras estações que não aquela. As que amaciassem flores e, depois, parissem frutos. Viera pelas mãos de um médico, que era já poeta, mas entendido como terrorista pelo Governador local e pelo Pároco da cidade que, à noite, fazia-se de Joker daquele, como se sussurrava então. Nascera sem grito – nem dele, nem da mãe, angustiada de homem aprisionado, também visto como terrorista. O nascer sem grito era a marca daquele momento de natividade e a parteira velha, prendada como era, dissera, de voz bem baixa: se salvar, este menino vai ser poeta. E talvez comece assim, sem alvoroço algum, a história do nosso protagonista. Profetiza ela, esse médico virou poeta famoso. E o menino, mais tarde transmutado em palavra, jamais teve outra casa, por mais tectos que encontrasse. Poesia seria o seu único abrigo. Banhado ali em sangue e noutros vagidos de sua primeira casa, o menino propiciava o seu deslizar de brisa pela vida…

domingo, 30 de maio de 2010

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
no mundo graves tormentos;
e, para mais m'espantar,
os maus vi sempre nadar
em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
o bem tão mal ordenado,
fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim
anda o mundo concertado.

Luís Vaz de Camões

sábado, 29 de maio de 2010

um

Cai um sino do pinheiro de natal.
Por muito menos se foge de casa
de seus pais. Agachados sob o leque
das hortênsias, descobrimos que as lágrimas
são fáceis de engolir. Sem saber,
já chegamos ao escuro.
Só nos falta pôr o til na palavra solidão.

josé miguel silva
vista para um pátio seguido de desordem

quarta-feira, 26 de maio de 2010

JANEIRO/FEVEREIRO

Calendário Philips 1980


Nem só a cav
idade da boca
Nem só a língua
Nem só os dentes
e os lábios
fazem a língua
Ouça
as mãos
tecendo a língua
e sua linguagem
É a língua
têxtil
O texto
que sai das
mãos
sem palavras

Décio Pignatari

terça-feira, 25 de maio de 2010

O voo do Poeta

O voo do Poeta

Voa o pássaro na sua alvura, na sua inteira condição de pássaro. O seu existencialismo é natureza. O pássaro não voa para ser livre. Voa porque é natureza. Assim como não canta, porque sua anima é aquela de se comunicar o que aos homens encanta. Quem voa para além do pássaro é o Poeta. Que se prolonga no desejo da liberdade, quase na sua anti-natura, é o artista. Quem canta é o ser humano, amarrado entre os anjos e os demónios, no desconcerto dos momentos. Do quinto dos infernos, não nos salvaremos, mas, convenhamos, a vida é de se louvar. Seja o inferno...e daí? O nosso errático jeito de estar no mundo é a metáfora com que a ele nos damos. Tergiversar não dá. Tergiversar acontece-nos, pequeníssimos que somos diante do voo. Entrementes, voa o Poeta na sua sinecura, na sua fragmentada condição de não pássaro.

A solidão das cavernas frias

Às vezes, bem á maneira de Guimarães Rosa - escritor que relíamos no âmbar das noites -, instalava-se em nós essa solidão das cavernas frias. Não que estivéssemos fisicamente distantes. Ou à mão do afago e do amasso. Diria até que me cadencias com o teu fôlego. Diria ainda que eras animal escondido aos meus olhos que te encontravam. Bem à essa maneira, instalava-se-me esse sentimento de solidão, esse vazio que me apanhava pela rama das coisas. Outras vezes, parecia perfeito tudo. Ou quase perfeito, já que me retomara aos blogs, aos poemas, à poda das plantas (begónias, alecrins, rosmaninhos, roseiras e aos bonzais de malaguetas) no recorte da sala, ao cooper vespertino na marginal. Retornara-me a recompor os pratos do mundo e tirar do forno pão quente à beira de um vinho por abrir. Quase perfeito, porque o sol cumpria a beleza do sol-posto e eu percebia, como naquela música de Eugénio Tavares, haver amor no entardecer da idade. O mundo existe e a existência das coisas (dos seres, sobretudo) impõe limites aos sonhos e às vontades. Todavia, à varanda, de onde olho para o longe, tacteiam à minha mentes os versos de Manoel de Barros: Quando as aves falam com as pedras e as rãs com as águas - é de poesia que estão falando. Ah, ser livre para outros olhares, saberes, pensares…

O silêncio dos bons

Hoje, Dia da África. A cidade de Salvador acorda divina. Com o marulho da orla marítima do Farol da Barra. Para além da religiosidade que se emana desta hora, o que me profana é o querer abraçar o mundo. O grito dos maus perpassa nos jornais, na rádio e na televisão. Dói-me este maniqueísmo meu de destrinçar os bons dos maus. De haver bons e maus em mim. Esta angústia de também classificar, catalogar, indexar. Havendo razões diversas, todas frágeis entretanto, por suposto umas serão menos irascíveis que outras. Aquela de resumir a África em futuro adiado, não me motiva, nem me mobiliza, A dialéctica em processo, não só recusa o fim da história, como reafirma a reformatação das grandes mudanças conceptuais e estruturais. Qual o desafio? Fala-se do afropessimismo, do continente perdido. Quero ouvir as outras vozes. A pedagogia da esperança. Murmura-se longe. Quais os caminhos da África? Temos de procurá-los com fé, entusiasmo e perseverança. Com causa e consequência. Pontuo a frase de Martin Luther King Jr.: O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons…

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Força di Cretcheu

Ca tem nada ness bida más grande qui amor

Si deus catem midida, amor ainda ê maior
Amor ainda ê maior, maior qui mar qui céu
Ma d`entre otros cretcheu, di meu ainda ê maior.
Cretcheu más sabi, ê quêl quê di meu
Ele ê quê tchábi qui t`abrim nha céu
Cretcheu más sabi, ê quêl qui'm crê
Ah s`m pêrdel mort dja bem.
Óh força di cretcheu abrim nha asa em flôr
Dixam alcançá céu
Pám ba odjá noss senhor
Pam ba pidil simente d`amor
Sima ess di meu, pam bem dá tudo djenti
Pa tudo bem conchê céu.

Eugénio Tavares

domingo, 16 de maio de 2010

Valsa Brillante (Sounds of Hudson & de sacu_didela)

(Uma bandeira é um pedaço de pano, irmão)





Mas,
de
sacu_didela,
como está afoita ao vento,
as estrelas caem-lhe por terra
e resvalam-se-lhe (presumo hinos
e alvíssaras)
pelos cueiros
…cidade de drenagens entupidas!


é de quando (nem chove),
assim,
comem-nas terras
- elas, aquém do esteio
e feitas bocas -,
afagos,
tragos
mostos sem medida
comem-nas mátrias,
com queijo e fiambre,
nos detalhes,
intimidades
e territórios;



(Uma bandeira de céu, de mar e de sangue, irmão?)





Mas,
de
sacu_didela,
como se liquefaz seu vermelho,
seu maluco azul, de céu e mar
e menstruam-lhe (a cada mês
o arquipélago não fecundado)
disfuncional útero
…cidade de útero removido!


é de quando,
assim como aos oceanos,
as ilhas ficam
- às tantas, que se perdem
pelo estio das estrelas -,
mas de morderem também,
ou comendo-as ainda
(com preservativos)
as ilhas são frutos secos,
amêndoas do destino,
caroços e destroços,
cancerígenos trópicos
pátrias
e cloacas outras…


 
Filinto Elísio
in Me_xendo no Baú. Vasculhando o Ú