terça-feira, 31 de janeiro de 2006

Travessia

Travessia

Disse, uma vez Cláudio Vivo (dou um doce a quem descobrir o seu paradeiro): É triste, mas verdadeiro. A grande maioria das pessoas passa por esta vida imersa na multidão, cumprindo prazos, pagando contas, morrendo de medo do futuro e idealizando um passado remoto que é na maioria das vezes um monte de sequelas. Outros (poucos, loucos e raros) desafiam, desafinam este coro de contentes descontentes. Jean Arthur Rimbaud no séc XIX e Jim Morrison no séc XX, entre outras almas solitárias e radicais, chegaram à beira do abismo e resolveram experimentar que gosto tinha o pulo. Não sei se os leitores entendem o espírito, mas os tempos pedem um esforço de compreensão. Entrementes, estava no terraço de um ferry que nos atravessa o canal entre São Vicente e Santo Antão.

On the road

Estive em Santo Antão e caí de quatro. Fiquei impressionadíssimo com as montanhas e com as cordilheiras. Todas imponentes e caprichosas. Desafiando tudo. A terra e os homens. Mentalmente revi os retratos de “Flagelados do Vento Leste”, de Manuel Lopes, um romance marcante. Em Ponta do Sol, alojei-me perto da minha casa da mais tenra infância. E, por um relapso que só Freud explica, revivi o convívio com Nha Juliana e os passeios à mirada de Ponta de Pistola. Palmilhei a ilha de lés a lés e quase quis parar – assentar de cama e mesa! – em Ribeira do Paul. Mas havia um comício mais à frente e uma eleição para ganhar…

Campanha alienígena

Abro os jornais e acompanho o impropério. Ainda bem que isso só acontece num planeta bem distante. Em Cabo Verde, as coisas já são diferentes. País do milénio, do desenvolvimento médio e da categoria 1, ora. Mas dizia, o dito acontece num planeta a mil milhas. Ali, a fraude eleitoral é cassete gasta de todo o derrotado nas eleições. Uma linguagem violenta, virulenta e rasteira. Com verguinhas, cimentos e euros à mistura. Os cartazes gigantes, médios e pequenos, espalhados pelo planeta, são para o inglês ver. Na ante-véspera das eleições, está-se mesmo a ver, a capotona faz das suas e sai pela calada a comprar votos. As capelinhas, as clientelas e os carreiristas de sempre. Dão vivas e abaixos diante da multidão. E querem ganhar à força (e à sombra) umas eleições já perdidas. É a lógica do verbo fácil, demagógico e conventual, onde o Estado é palavra vã. Assim não dá…

Musa de amarelo

Em Ribeira das Patas, conheci uma linda jovem. Estava grávida e vestia umas camisolas amarelas, pilon-pilon. Quis saber das suas razões, além do entusiasmo político, pontuado pela batucada. Ela falou-me do futuro e da sua responsabilidade maternal. Prometi sugerir à dita, musa da campanha, disse alguém, um nome para o primogénito. Vai ser um nome bonito, risonho que nem a aurora. Para, como diria o poeta Mário Fonseca, quando a vida nascer…

quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

Os desgovernados

Sobre aquela praia

Como se a espiral desse agora mais uma volta, assim eles se encontraram tantas luas passadas sobre aquela praia. Que o passado esteja morto e enterrado. E dele fique lembranças, ora boas, ora nem por isso, mas sempre cândidas de mãos fadadas para um reencontro. Esquecidos da elementar cautela, os desgovernados amaram-se pela madrugada e a sorte, que sempre inveja, soube serenar o seu ímpeto de maldade. O amor é o melhor que há nas nossas vidas, escrevera ele em tempos distantes, noutras paragens. E ela então prometida ao destino suspirava o derradeiro encontro, como se de “Amor em Tempos de Cólera”, de Gabriel Garcia Marquez, tudo se tratasse. E a espiral, cumprindo mais uma volta, fez do fugaz o que a vida tem de eterno. Mesmo que soletrada sobre aquela praia…

Um novo mundo é possível

Em tempos de campanha eleitoral, a crónica fica entontecida. O texto tem de se apartar das tentações e o cronista fica esquizofrénico. Por isso, ele fala de amor, que é a mais profunda forma de subverter as coisas. E por falar de amor, acontece neste momento o Fórum Social Mundial, desta feita na Venezuela. O Fórum se define como um espaço mundial de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão e formulação de propostas que se opõem à ditadura do capital. Vale a pena conferir esta cosmovisão no Site: www.forumsocialmundial.org.br . Nele li um extraordinário discurso de Hugo Chaves sobre Sandino, Simon Bolívar e Pancho Vila. Não só o texto retórico estava impecável, como a semântica era toda conseguida. Nestes tempos em que a América Latina retorna às lideranças necessárias, valerá a pena acompanhar o mundo com uma visão mais alargada e crítica. O nosso olhar não pode ficar confinado às eleições portuguesas, desaguadas em Cavaco Silva, mas têm de extravasar para mais além. Céu é grande, mundo é largo…


Águas passadas…em festa

Acontece a qualquer um embriagar-se numa vitória eleitoral. Logo eu que sou fã de Kundera e tenho sempre à mão “O livro do riso e do esquecimento”. Pois, dizia, acontece a qualquer um saltar, sorrir, dançar e gritar vivas. Quem diria, eu que não vou à procissão, nem à manifestação. Eu que vejo a vida e a morte, como um albatroz, convencido que o poeta nunca foi deste mundo. Mas esse celebrar transcendeu a um devaneio passageiro. Sofri a cada hora da campanha, a cada minuto da contagem dos votos e a cada segundo do anúncio dos resultados. Não nego que essas eleições mexeram com a minha estrutura muito mais do que eu gostaria de admitir. Pelo sim e pelo não. Por isso, são águas passadas…em festa!





O gado em raiva & já faltou mais


Soube, por travessas portas, que o gado continua raivoso. Há quatro anos raivoso. A destilar alcatrão quente pelas ventas e a vociferar mil pragas contra o alter-ego do Pranchinha. Este também não é flor que se cheire. Tão logo diluído no esquecimento, volta à carga, atiçando os do palanque para o diálogo dos dias. Pôr as ideias a circular é o apanágio dos democratas, razão porque não se compreende que o gado continue tão neurótico. Tendo o vulgo indagado as razões de tamanho fiasco, o Pranchinha respondeu, com aquele humor de espantar catedrais: “O efeito ‘manito bomba’ é de feitiço contra feiticeiro, ó minha gente”. Mas não tardará muito para que possamos voltar à normalidade. As eleições são necessárias, porque dão oxigénio à democracia, mas cansam. Exacerbam. O nosso espírito já pede algum remanso, algo como uma paz. De uma nuvem que se instala, linda como um algodão doce, diante do nosso olhar existencial…


Os desgovernados

Os desgovernados olharam o céu e aquiesceram. O que dirá o Zodíaco sobre o futuro e a angustiosa decifração dos enigmas? A tremeluzente cidade, adormecida, dolente na sua aparência. O arfar das horas monocórdicas e dos corpos assustados. O importante é haver vida e vivê-la com sentido. O resto…ondas que beijam a praia e depois partem. Liquefeitas, realizadas, saciadas…

quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

Aquariano pós eleitoral

Crónica recortada

Desta feita, faço recortes. Não por falta de assunto. Mas por excessivo assunto. Saio à rua e tudo muda de figura: cartazes, bandeiras, músicas, farpas e fanfarras. Está-se em tempo eleitoral e eu, como a maioria dos cabo-verdianos, vou votar no próximo domingo. E, quem sabe, apesar da sandice de certos discursos, estejamos novamente a fazer história. Manifestamente há civismo nestas eleições. Tirando um ou outro caso, a lembrar que “quem não suja à entrada, fá-lo à saída”, tudo corre como manda o figurino mais civilizado. Às tantas, percebe-se que a democracia é um excelente processo civilizatório. Isto é, aos poucos, vamos perdendo a barbárie que nos torna exacerbados uns com os outros.

O Pranchinha revisitado

Daria tudo para reavivar o Pranchinha. Este também daria o céu para assistir a tudo isto. Obviamente com o seu humor consequente de quem destrinça o trigo do joio. Por mais isento que o gajo se assumisse, fazendo jus à sua mania de juiz, nestas eleições a neutralidade parece impossível. De resto, não se pode ficar neutro, nem indiferente perante Cabo Verde. E Pranchinha teria de entrar na dança, seguir a procissão e subir ao palanque (ó política a quanto obrigas!). Frequentar a conversa de café. Curtir a demagogia dos assessores lusitos, compará-los aos tupiniquins de outrora, e lamentar a marginalização das competências locais (mesmo quando não mercenárias), enfim…o que o Pranchinha tem perdido nestes dias!

Conversa de café

Devíamos ter ido lá todos, amigos e conhecidos, nunca inimigos, diga-se, ouvir o que o homem tem de novo para dizer. Saber se há novidade, pois das velhas coisas (não por serem antigas, mas por serem ultrapassadas) já não há vencimento. Esperarmos que o discurso não traga desgraças, nem que os gestos sejam de briga. Já ninguém quer ir para a Pasargada, de modo que terá de ser aqui, na Tapadinha. Caso para dizer que estamos condenados ao entendimento. Obrigados ao destino comum, por Cabo Verde. Por isso, e porque há valores que transcendem a política, a tolerância e o diálogo devem falar mais alto. Devíamos, pois, ir à conversa de café. Para expressar as nossas “posições espontâneas”. Ou quanto mais não seja pelo café. Que nunca defraudou ninguém…



Xatiadu ku flipadu

O comício ia forte e feio, cheio de desgraça e de má-língua, vaticinando para Cabo Verde tsuname, tremor de terra, erupção vulcânica e praga de mil pés. O comício do pessoal xatiadu ku flipadu, pronto para tomar a terra de assalto e para ver se era daquela que a malta comprava gato por lebre. De repente, surge o jornalista no meio do apupo dos imbecis, uns mais fanáticos do que outros a mandar vir farpas contra o gajo. “Li o teu artigo no on-line”, diz um cão-de-fila, pronto para saltar na presa. O seu comparsa põe o dedo em riste e ameaça o jornalista. Gente que confunde estado de direito com da direita. Onde será que vimos isso? Alguém se lembra das ameaças pidescas? Em tempos do Estado Novo, seria? É pá…uma corja de fascistas!

Aquariano pós eleitoral

A 24 de Janeiro, este aquariano fará anos. São muitos e não os vou dizer ao leitor. Só direi que continuo engajado às coisas da arte e não às circunstâncias da política. O tempo eleitoral está sendo uma excepção, uma espécie de intervalo para dar o meu contributo modesto. Como cidadão não ficaria bem com a minha consciência, se visse este momento a partir do cais de ver passar o barco. No dia 13 de Fevereiro, faça sol ou chuva, venha nuvem ou Juno, voltarei aos meus poemas e às minhas pesquisas. Como diz alguém que me é próximo, “é tempo académico, mano”. Et pour cause, a partir dessa data, regressarei ao meu âmago. Aquariano tem cada uma…

sábado, 7 de janeiro de 2006

Rio

Eis que um rio que nunca deveria ter tido outro rumo regressa agora às suas margens. Não saberei se por saudade ou se por cansaço. Ou se por alguma vocação impregnada às coisas que termina sempre o seu a seu dono. Os abraços, a boca, o cabelo, o sexo, o perfume, tudo exala um retorno mais que eterno. E eu, perplexo diante da vida, deixo-me escorrer nessa torna-viagem como se a sina me viesse já escrito. E nós, ao fim e ao cabo, cumpríssemos uma rota concêntrica. Em torno deste enorme amplexo…