terça-feira, 9 de janeiro de 2007

Como um serafim






"Estou-me a vir/Estou-me a vir/
E tu como é que te tens por dentro?
/Porquê não te vens também?"
(trecho de "Porquê", de Caetano Veloso)





Mote

Não sei dizer o que sinto, mas gosto de percorrer a minha cidade de carro, à meia-noite. A cidade tão-somente, um tanto dormida, entregue aos noctívagos. A frieza da orla. A mucosa maluca da maresia. Prostitutas e bandidos. Polícias e ladrões. Menores e pedófilos. Boémios e desalojados. A falsa quietude da noite. A cidade encanta-me. Excita-me. “E tu como é que te tens por dentro? / Porquê não te vens também?". E, em assaz diapasão, não irei pôr nenhuma vírgula a mais diante desta realidade que falseia. Tendes, Senhor, tal certeza…


Pranchinha em pessoa

O ano começa e é forçoso que vos diga quem sou e ao que venho. Sou poeta. A poesia, que não outra virtude, me salva do infinito. E da arrogância da eternidade. Venho ora cantar-vos (ou seria apenas contar-vos?) das coisas do Pranchinha, essa personagem que me acompanha e que, em desavindas estações, me complica a vida. Rebelde, pelos arrabaldes, ele é o Pranchinha. Eu sou mediano, cidadão como os demais, submetido ao IVA. E à missa profanada dos nossos deuses pequenos. Mas esse aí é um imponderável em pessoa. Pranchinha, minha chuva mais oblíqua…

Frágil

Eu seria frágil. Fragilíssimo. Preso por um fio. Tanto que carregaria nos lábios o balbuciar dos versos de João Cabral de Melo Neto. Num fim de tarde roxa, a rola e o rouxinol voaram no improvável. E terei ido ao teu enterro para morrer também e ali recitaria (sem alarde): A solução é apressar a morte a que se decida. Entrementes, escrevo não para te dizer que o luar é belo, mas porque a minha solidão é desmedida. Como um peregrino do nada. Com esta vastíssima fragilidade…

Que nem um serafim

E a vida continuada…vem ali o garoto – assumidamente testosterona – marcar a sina do macho que se resguarda. Sem machismos. Como um serafim, ele deambula pelo elixir do teu encontro. Não pelo vinho, que é da melhor colheita, mas pelo teu olhar de alba e teu perfume de âmbar. Nas madrugadas híbridas, sobretudo. Nem pelas musas maduras que o vêem a vir e a cruzar o pátio art-deco, mas pela tua alegria que vê quem chega. Tão pouco ele permanece à varanda rente ao mar e desencadeia a cornucópia da tua temperada carne. Ele é vinagre balsâmico, azeite mais virgem e coentros bem frescos. Ou a música que se evade da vizinhança e invade ao sono és tu, nas lembranças dramáticas. Se dependesse de mim, que nem um querubim, isto seria flor e fruta. E esta permanente semântica da fome. Ou da sede…

Remate final

Não fossem por estes afoitos de intertexto que, vez por ora, me apanham, terminaria isto assim à maneira de Pêro Vaz de Caminha, uma das mais poéticas crónicas que já li, rezando que (…) tereis, Senhor, ao menos a certeza/ que nada se afeia nem alinda. / E se não sei dizer o que senti/ não haja aqui de pôr mais do que vi (…). E mais nada…

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